Quando fui até Cotia visitar a casa em que Rachel e Larissa moram com a pequena Maria Eugênia e as cinco cachorras mais simpáticas possíveis, não esperava encontrar uma família tão linda e parceira. Lari explica que esse amor tão claro que se enxerga logo que chega é atraído por diversos movimentos, elas nunca ficam paradas: estão sempre falando, ouvindo, dispostas e principalmente não se julgando.
Na maternidade entenderam como o não julgamento é importante. Cada uma traz a sua referência de amor e de educação, então precisam entender juntas como criar alguém. Além disso, passaram a perceber a maternidade como uma grande espera: antes, esperavam os exames, depois, um bebê por 9 meses, agora tudo é no tempo da Maria Eugênia. Vivemos numa sociedade muito imediatista que quando você entrega algo e o resultado não sai na hora você se sente frustrado… o tempo de um bebê é muito diferente, o relógio deixa de fazer tanto sentido, e assim elas estão observando muitas coisas diferentes na forma de se relacionar com a vida também. Sentem que o começo do relacionamento era muito sexual, com cheiros, sensações, toques; Depois passaram por um momento de centralizar, entender o que desejavam para a vida, repensar; Depois viveram o planejar, construir a vida… E agora esse amor de doação, de paciência.
Logo que Maria Eugênia nasceu, elas pediram para um veterinário vir até a casa para entender como seria o convívio com os animais. Depois de um tempo ele disse: “Nossa, aqui é muito diferente. São 5 cachorras que convivem muito bem, fêmeas, vocês são duas mulheres com um bebê e aqui não tem barulho, é silêncio”. E adoram viver assim, em harmonia.
Rachel, no momento da documentação, estava com 38 anos. É psicocardiologista, identifica síndromes e transtornos psicológicos que acometem o músculo do coração e trabalha tanto na área clínica quanto dando supervisões. Nasceu em Itu, no interior de São Paulo, e atualmente mora em Cotia.
Larissa, no momento da documentação, estava com 27 anos. É pedagoga mas não atua na área. Trabalhou em uma empresa própria produzindo e vendendo produtos para pets durante 7 anos, desde que elas adotaram a primeira cachorra, que por ser pequena pouco achavam produtos para ela. Hoje em dia, Lari se dedica à maternidade e registra bastante isso em suas redes sociais, fazendo disso uma fonte de renda alternativa.
Para Lari, o namoro - que começou quando ela tinha 19 anos - foi uma descoberta sobre possibilidades de famílias. Um grande acolhimento. Quando ela conheceu a família da Rachel, pensou: “Meu Deus, dá para ser amada assim? Dá para viver isso? É assim que um apoia o outro?” E hoje em dia ela segue enxergando o amor, a família e as possibilidades de amar como grandes descobertas - ela traz o exemplo das cachorras, todas são resgatadas e algumas viveram os maus tratos, como a Vibe (golden retriever) - a primeira vez que elas demonstram felicidade, mexem o rabo, é uma descoberta, é ver o amor acontecendo, é entender que sim, dá para ser amada assim.
Rachel conta sobre uma cirurgia muito delicada que precisou fazer e que passou por muitos cuidados, desde ajuda para escovar os dentes, tomar banho, até cuidar dos curativos e processos mais dolorosos… e Lari tem muito medo de agulha, sangue, cicatriz, mas mesmo assim cuidou e não saiu do lado dela. Essa parceria que possuem e que sabem que podem contar é algo muito valioso que entende como único.
Foi em dezembro de 2015, literalmente depois do Natal - dia 25 - assim que a ceia acabou, que se conheceram. Era uma festa LGBT em Campinas, estavam lá para passar o natal com seus respectivos familiares e souberam da festa por amigos, separadamente. Se esbarraram na festa porque a Rachel interagiu com o amigo da Lari sobre ele ter um piercing no mamilo, já estava bêbada e a Lari interagiu com eles, mas na hora ela não retribuiu a interação, achou um pouco estranho. No final da festa, a DJ, que era quem convidou a Rachel, questionou que ela veio para a festa mas não beijou ninguém e ela explicou que até tinha sentido atração por “aquela menina” (a Lari) mas que “com certeza ela era hétero”.. A DJ não acreditou e disse para ela ir logo tentar o beijo, então ela foi, cutucou a Lari pelas costas e disse: “Vim aqui te dar um beijo!”. O beijo foi horrível, ela foi embora para Itu logo depois, o dia já estava claro… Até que no dia seguinte recebeu uma mensagem da Lari dizendo: “Chega, me beija e não pergunta nem meu nome”.
O celular da Rachel a Lari conseguiu porque ela passou para o amigo, quando se conheceram momentos antes.
Ela respondeu: “Tem razão, qual seu nome e idade?”
“Larissa, 19 anos.”
Rachel gritou: “Puta que pariu! Eu escapei da pedofilia por um suspiro!”
Ela tinha 30.
A mãe da Rachel entrou no quarto com o grito e perguntou o que houve, quando ela respondeu que ‘ficou com uma novinha ontem’ e foi questionada a idade, a mãe respondeu: “Ah, Rachel, pelo amor de Deus… Com 19 anos todo mundo já sabe muito bem o que faz!”.
Rachel diz, rindo, que daquela festa a Larissa já saiu namorando. E Lari responde: “É, ué.” Na época, Rachel morava em São Paulo e Lari em Sumaré, no interior, onde ocupava seu tempo fazendo diversos tipo de artes entre tecido, jazz, balé, teatro… Rachel era totalmente o contrário, vivia em pesquisas científicas, vida acadêmica, coisas mais quadradas, estava em crise de idade e ficava pensando que Lari iria entrar na graduação enquanto ela já seria professora universitária.
Para Lari, elas já estavam juntas no período que se conheciam/ficavam em 2016. Passavam bastante tempo juntas, viajavam, mas não rotularam enquanto um namoro porque era bem difícil para a Rachel, ela se sentia blindada. Até que elas decidiram morar juntas, no final de 2016, quando iriam completar um ano do dia em que se conheceram, e adotaram a primeira cachorrinha - assim teriam mais um motivo para estar em casa. Depois disso, Lari começou a graduação e a vida foi ficando mais leve. Adotaram mais uma das cachorras pequenas, viajavam bastante e cada uma foi adaptando sua rotina e seus trabalhos.
Até que em 2017 começaram a loja com os produtos de pets, depois adotaram as cachorras maiores.
Pontuaram algumas vezes o fato de que no começo poucas pessoas apoiaram o namoro, a maioria achava que era algo transitório por conta da idade e principalmente por serem de universos muito diferentes. Lari ensinou uma leveza para a Rachel que ela nunca havia tido contato, ela sente que deixou de ser quadrada. Tiveram muita torcida contra, mas seguiram juntas e acreditam que é essa persistência que fez a vida valer a pena.
Desde que se conheceram, Larissa falava sobre o desejo de gestar e maternar, não parecia ser uma fase, mas esperaram isso amadurecer. Em 2019 começaram o movimento de fato, fizeram terapia juntas para entender como seria (visto que Rachel não sentia o desejo de gestar, pensava muito na adoção) mas precisavam também ter um planejamento: ter uma casa e um preparo de vida para a chegada da Maria Eugênia.
Compraram a casa em 2020, tiveram muitos desafios com empreiteiras, foi um desgaste bem grande, demorou mais de um ano depois da mudança para conseguir seguir com o planejamento da gravidez. Em 2022 fizeram buscas por médicos, mas não se sentiram seguras, então deixaram passar novamente. A sensação era de que o quarto era uma tela em branco, sempre esteve ali, mas pouco falavam sobre.
No final de 2022, Rachel teve um problema de saúde bem grave e decidiu congelar óvulos, mas quando procurou o procedimento eles aconselharam a não fazê-lo porque as chances de não darem certo eram muito grandes. Foi ali que decidiram: vamos investir agora. Ela passou por três equipes nesse processo, infelizmente a experiência com as duas primeiras não foram boas, ela sofreu violência obstétrica, pediu para que mudasse para uma equipe de mulheres e conseguiu, já haviam comprado o material biológico masculino e foi enviado para o novo local. Em abril de 2023 fizeram a primeira transferência embrionária, deu tudo certo, ouviram o coraçãozinho, passaram o primeiro dia das mães juntas, acompanharam o desenvolvimento por 7 semanas até que não teve mais evolução na gestação, não tinha mais batimento cardíaco. Clinicamente, foram mais de 45 dias para começar tudo novamente (preparar o corpo para uma nova gravidez), mas além disso é preciso considerar o quanto elas estavam muito abaladas por essa série de coisas que sofreram em meses. A segunda tentativa foi em julho, e deu certo novamente, a Maria Eugênia veio ai.
Hoje em dia, se colocam como mães antes mesmo de qualquer comentário chegar. É quase como um escudo, uma blindagem, já se preparam. Já ouviram diversas perguntas, comentários, coisas sobre a Rachel ser avó da Maria Eugênia, mãe ou irmã da Larissa. E nesse ponto falamos muito sobre como as pessoas se acham livres para fazer comentários sobre os nossos corpos ou sobre o não-reconhecimento delas enquanto um casal e, sobretudo, uma família. Encontram qualquer via, desculpa, para não reconhecer essa unidade familiar. Então o escudo vem para evitar desgaste: já se colocam como mães, Maria Eugênia é filha delas, deixam claro que a família existe antes de qualquer coisa, em todos os lugares que chegam.