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A história da Paula e da Mariana chega enquanto algo muito poderoso no Documentadas. E quando digo poderoso, quero me referir à grandiosidade que temos aqui: primeiramente, uma denúncia que precisamos fazer sobre a forma que as instituições religiosas tomam o corpo das mulheres e manipulam suas ideias, culpabilizam seus desejos. Grandiosa é também pelo seu afeto, que rompeu as barreiras e trouxe cor, trouxe amor, trouxe uma nova vida para as duas que se permitiram descobrir o mundo juntas. 

 

No momento do nosso encontro, Ma e Paula estavam morando em Jundiaí, interior de São Paulo. Mari veio de Cascavel, no Paraná, em 2018 até Campinas, casada com um homem que desejava se tornar pastor e resolveu cursar psicologia. Não teve muito apoio da família para começar a faculdade, mas sempre amou conversar e ouvir as pessoas, então decidiu iniciar seu sonho. Paula, por sua vez, cresceu e viveu na igreja: seguiu a risca os princípios da religião. Foi presidente, missionária, louvava todo domingo - e também, todo domingo, pedia perdão porque achava que tinha uma doença, a de sentir atração por mulheres. 

 

Não teria como começar esse texto sem explicar o quanto esse amor representa: cor. Por maiores que sejam os desafios relatados, é muito gratificante olhar para elas e ver as roupas coloridas, o afeto (muito afeto!), as mãos dadas enquanto conversam sentadas na grama, tudo muito enfeitado, cuidado. Contam como era a vida antes, como realmente achavam que não podiam usar cores fortes, sair em certos lugares, beber certas bebidas, estar com certas pessoas, usar roupas ou ter cortes de cabelo. E como agora se permitir vestir, se conhecer, descobrir o que querem usar/quem são é o que gostam de fazer - de forma perceptível e feliz. 


 

Por mais que Paula pedisse perdão para Deus por sentir atração e se sentia uma aberração, uma doença ou algo tão ruim quanto, a verdade é que nunca tinha beijado uma mulher ou sequer conversado com alguém sobre esse desejo, pelo medo da repressão que poderia sofrer ou dos homens não a desejarem mais. 

 

Naquela época, o tanto que Paula era envolvida com a música na igreja, a Mari era envolvida com as pessoas porque adorava conversar, ouvir as mulheres, aconselhar… Há alguns anos atrás, antes da mudança para Campinas, Ma teve uma vivência de beijar mulheres e casou justamente pela “cura”, falava sobre isso abertamente, se orgulhava de ter sido curada, afinal, era isso que a igreja pregava. Quando a Paula soube, pensou: “Posso falar pra ela, ela não vai me julgar”. Demorou alguns meses para tomar coragem e, na metade de 2019, marcaram de caminhar num final de tarde. A Paula contou, mas como se já tivesse passado por isso, no sentido de: “Sentia atrações, já não sinto mais… Uma vez aconteceu. Já passou.” 

 

Paula, que sempre foi muito fechada, começou a se abrir e permitiu conversar com a Mari. Tinham diversas coisas em comum, inclusive a irmã da Paula estava morando em Curitiba na época - e Mari é do Paraná… essa questão geográfica as aproximou ainda mais. 


Foi num momento muito difícil em que a avó da Mariana faleceu, que ela precisou ir ao sul, estava muito vulnerável, se sentindo triste, não quis ir sozinha e a Paula foi sua companhia dando suporte e apoio onde elas passaram mais tempo juntas e se aproximaram de fato. Depois da viagem sentiram muita saudade uma da outra e foi um período de sofrimento muito grande, não só pela saudade, mas entraram numa angústia misturada com negação e questionamento, se viam em constante conversa com Deus: “Você não tinha me curado? O que tá acontecendo?” e no caso da Mari: “Eu fiz de tudo, eu até casei”. 

 

Sentiam muita falta da outra no dia a dia e queriam se ver em qualquer brecha que tinham, seja para caminhar, almoçar, jantar…  Foi quando Mari resolveu conversar com o marido sobre o que estava sentindo. Sua reação foi de ficar muito magoado, bravo, foi para o Paraná e contou para a família dela e para os pastores. Foi nesse cenário que ela foi para Jundiaí, na casa dos tios, como um “tirar a Mariana de cena”. 

 

Obviamente isso respingou na Paula, chegou até a igreja em Campinas, nos pastores e na família dela. O ano já era 2020, a pandemia de Covid-19 estava começando e tudo estava parado/se adaptando para o mundo online. O pastor chamou Paula para conversar, anunciando que iria afastá-la de todos os ministérios, que ela iria precisar passar por várias “disciplinas”. A mãe dela sabia e também negava, colocava bíblias grifadas na cama dela, tudo estava muito difícil, foi quando Paula decidiu ir até Curitiba passar uns meses na casa da irmã. Precisava se ouvir, se encontrar, entender o que queria fazer. 



 

Entre o tempo que Paula estava em Curitiba e que Mariana estava em Jundiaí, elas conversavam online, mas tudo era muito confuso. Ainda viviam períodos turbulentos por conta da religião e das suas famílias, além de que elas nunca tinham se beijado. Tudo acontecia por conta da atração que elas sentiam, mas existia a possibilidade de dar errado, de não ser bom, de não se suportarem juntas, simplesmente. 

 

Quando Paula decidiu voltar para São Paulo, foi para Jundiaí encontrar a Mari. Lá, ela vivia bem com os tios. Eles são pessoas muito respeitadoras - que inclusive não apoiavam o casamento dela enquanto “cura” - e deram apoio para ela começar essa nova vida, buscaram emprego, apoiam também a relação dela com a Paula. Foram a primeira rede de apoio que elas tiveram. 

 

Depois de se reencontrarem, Paula fez uma carta de desligamento da igreja, principalmente quando soube que o pastor queria que ela fizesse uma disciplina pública - expondo para todos que, se fosse ficar, seria “curada”.

 

Depois de quase um ano vivendo esse processo entre a viagem que fizeram no falecimento da avó e a aceitação de quem são, relembram como tudo foi muito intenso. Paula conta como o corpo dela falava: tinha crises alérgicas, muito stress, se culpava o tempo todo. Foi muito bom se libertar. Aceitar que não são doentes, entender, encarar, começar o namoro em si e começar a viver as coisas novas - beber com os tios pela primeira vez, por exemplo.

Depois do início do namoro, foram 6 meses em que a Paula morava com os pais em Campinas e namorava a Mari. A mãe não falava sobre o assunto dentro de casa, mas deixava claro que Paula iria se arrepender. O pai acabava confortando. 

 

Depois de muita violência psicológica, ela precisou dar um basta. Entendeu até o último momento que isso era um processo para a mãe, que leva tempo mesmo para entender, respeitar, aceitar… mas as coisas precisam ter limites, porque machucam. Foi quando decidiu sair de casa e morar com a Mari, em Jundiaí. 

 

Quando se mudaram, os problemas reais chegaram. Mari tinha uma vivência diferente, já foi casada, morava fora há tempos… Paula morou com os pais a vida toda, nunca tinha tido um relacionamento. Foram aprendendo tudo no dia a dia. Em 2022 moraram sozinhas o ano todo num apartamento, adotaram o Théo, um cachorrinho [primeiro cachorrinho da Paula], e sentem que tudo o que viveram foi muito aprendizado. Nesse apartamento a Mari pediu Paula em casamento. Foi lá que aprenderam que dependiam uma da outra, que estavam realmente juntas. No começo da relação achavam que todos iriam ter que aceitar o amor delas, que a família iria ter que engolir… e lá no apartamento, não… viram que a vida era mais sobre elas, mesmo. Que elas já estavam felizes daquela maneira, naquele tempo. O pedido foi simbólico por tudo o que estava representando.


No momento da documentação, Paula estava com 27 anos. Trabalha enquanto engenheira de alimentos numa empresa alimentícia, fazendo a qualidade do produto. Já jogou badminton, joga beach tennis e adora tocar música. Brinca que se tornou engenheira de alimentos porque adora comer.

 

Mariana, no momento da documentação, estava com 28 anos. É psicóloga e está transicionando dentro da carreira. Adora falar sobre saúde sexual da mulher e prazer feminino. No tempo livre, ama estudar e também passa muito tempo na Netflix.

 

Hoje em dia, elas moram com os tios da Mari, numa chácara com duas casinhas e um espaço só delas. Se veem reconstruindo a rede de apoio, fazem parte de grupos de amigas em Campinas, não querem se sentir sozinhas e compartilham o que sentem, as questões, vão nos bares, nos eventos e adoram conhecer gente nova. 

Dentre o peso de terem vivido achando que são uma doença, Paula e Mari falam sobre como a religião nos coloca em muitos momentos contraditórios de vez em quando.

 

Paula relembra como se fala muito em amar ao próximo, já foi missionária e ajudava muito os outros, mas tudo era sempre pensando nela: como ela estava ajudando, como estava fazendo o bem, garantindo sua boa ação. E o quanto isso não é o que de fato Deus ensina. O certo é ajudarmos o outro porque nos preocupamos com o outro, porque amamos quem ele é, queremos cuidar. Hoje em dia, ela faz tudo pensando de fato na outra pessoa, não de forma superficial. E acredita só ter aprendido isso com a profundidade do amor. 

 

Mari explica que esse amor é um amor que não pesa. Traz o exemplo que não curte café da manhã, mas que adora levantar e fazer o café para a Paula, que acorda cedo para trabalhar. É algo muito natural, que gosta e faz por gostar. Uma profundidade que nunca tinha experimentado. Grandiosa. Muda a forma de olhar o mundo. E deseja que as pessoas vivenciem isso, sintam esse amor. 

 

Por fim, ainda sentem que Deus é amor e que é preciso ter muita coragem para se amar tanto. Acredito que é muito incrível elas manterem esse carinho pela fé, não guardam mágoas ou ódio, até porque foram criadas assim. É normal sentir rancor pela religião porque de fato é errado, criminoso e injusto o que fazem com os nossos corpos. Mas acreditam nas coisas boas que aprenderam e se apegam nisso, não tem como apagar e construir uma nova personalidade, então acrescentaram cor na que já existia, se tornaram pessoas melhores. 

 Paula 
 Mariana 
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