Lia e Thalita, quando se encontraram, sentiam que se conheciam há muito tempo - desde os gestos que tiveram uma com a outra, entendendo limites, carinhos e espaços, até o respeito e a paciência dos processos que viviam. Elas contam sobre a diferença de idade acabar quase não interferindo, pois entram em um equilíbrio visto que a Lia tem o jeito mais jovem e a Thalita, pelas vivências que passou, amadureceu muito rápido.
No dia a dia, vivem diversos detalhes juntas: jogam badminton, andam de bicicleta, possuem uma rotina dentro de casa através do home office, se conectam intrinsecamente. Para Lia, o amor está em tudo; em todos os relacionamentos, no trabalho, na relação, na música que elas ouvem, nas coisas que fazem juntas… Sua percepção de amor esteve sempre com ela, nunca viu diferenças num amor entre homem-mulher, dois-homens, duas-mulheres, mesmo que só tenha vindo a se relacionar com uma mulher na vida adulta. Então, por mais que entenda a posição política disso, nunca deixou de ter o amor como uma ação presente em tudo o que ela naturalmente faz.
Por mais que esse amor esteja nas ações, a relação com a Thalita trouxe algo diferente para a vida da Lia: o planejamento. Ela não era uma pessoa de fazer planos, tinha muita dificuldade de se ver no futuro, mas com a Thalita foi completamente diferente. Elas se apaixonaram rápido, namoraram rápido e foram construindo planos de vida juntas. Hoje, se sentem realizadas quando percebem que alguns já estão concretizados.
Thalita tem 26 anos e é natural de Jaborandi, um município do interior da Bahia. Saiu de lá ainda na adolescência e se mudou para Brasília para ter uma base melhor de estudos. Sente que nunca se encaixou completamente em Jaborandi, pois é uma cidade pequena, conservadora, que vive de agricultura. Em Brasília, começou a trabalhar com restaurantes e decidiu que gostaria de se mudar para São Paulo. Chegou a fazer a mudança, ficou pouco tempo, pois era difícil se sustentar, fez uma viagem por diversos lugares do nordeste trabalhando em bares e na praia, até que voltou para São Paulo, decidida a ficar e seguir trabalhando como garçonete. Seguiu alguns anos assim, até recentemente fazer sua transição de carreira para Desenvolvedora Front-end e está trabalhando com qualidade de software. Ela fala como foi bom fazer a transição, voltar a estudar, viver uma rotina semanal (porque antes não havia espaços nos finais de semana ou feriados) e como fez bem para o relacionamento das duas, também.
Lia tem 37 anos, é natural de Santo André, cidade localizada no ABC Paulista, em São Paulo, mas reside na capital há muitos anos. Ela trabalha enquanto Designer UX-UI em uma grande empresa.
Thalita e Lia se conheceram no bar em que a Thalita trabalhava, em 2019. Nessa época, a Lia era casada e tinha um salão de beleza, que ficava relativamente próximo ao bar, então era um local bastante frequentado por ela e pelas amigas. Toda vez que ela ia ao bar, percebia que a Thalita não atendia a mesa dela, mas a seguia no Instagram, então achava isso minimamente engraçado - percebia uma certa vergonha/nervosismo vindo da Thalita.
Na versão da Thalita, pela primeira vez que viu a Lia chegando, ficou toda encantada e serelepe, quis logo saber quem era. Quando descobriu que ela tinha um relacionamento, desistiu de tudo e ficou triste. Nisso, o tempo foi passando, elas sempre se viam no bar, mas ela nunca teve coragem de conversar com ela ou de atendê-la.
Num dia, a pessoa com quem a Lia se relacionava foi ao bar sozinha e acabou fazendo amizade com a Thalita, e, quando em outra data a Lia chegou no bar viu a intimidade das duas e achou interessante a situação. Acabou que, numa falta de comunicação, aconteceu uma situação um tanto quanto desagradável inicialmente, mas essa situação fez com que a Thalita e a Lia começassem a conversar pela primeira vez.
A partir daí, em uma nova oportunidade, a Thalita frequentou o salão que a Lia era dona (mesmo que ela não estivesse lá no momento), elas conversaram pelo Whatsapp e começaram um contato mais frequente. Neste momento, a Lia passava por uma crise muito grande no casamento, que já chegava próximo do término, e num dia, depois de uma briga forte (por motivos que não tinham relação com a Thalita, obviamente, até porque nada tinha acontecido), a Lia resolveu sair de casa.
Ao sair, estava conversando com a Thalita pelo celular. Chamou um amigo e foi até o bar em que ela trabalhava. Lá, eles ficaram até o bar fechar. Elas conversaram - contam que tremiam como adolescentes - e a Thalia comenta que nunca sentiu algo como o que aconteceu naquele dia. Ela chamou a Lia para fumar (sendo que ambas não fumavam, mas era uma desculpa para estarem juntas na rua) e foi assim que se beijaram pela primeira vez. Lia conta que era como se a Thalita já conhecesse ela há tempos, desde o começo. E, já que estava fora de casa, foram para o apartamento em que a Thalita morava. Neste momento, a Lia foi sincera com a ex-companheira sobre o local que estava indo. De certa forma, não queria que as coisas acontecessem assim, preferiria passar pelo divórcio corretamente antes de tudo acontecer, mas foi algo muito mais forte e, então, ela preferiu ser sincera desde o primeiro momento - tanto que, ela e a Thalita, a partir daí, não se desgrudaram mais.
Por mais que elas estivessem começando algo novo, precisamos considerar que não é nenhum pouco fácil sair de uma relação na posição que elas estavam - a Lia tinha um empreendimento, passou por uma série de abusos e, para embarcar em um novo relacionamento foi preciso muito cuidado. A Thalita, por sua vez, já viveu relacionamentos difíceis há anos atrás e estava solteira, num momento completamente diferente, um pouco mais estável, então conseguiu (e se disponibilizou para) ser um apoio neste processo.
Com o tempo, passou a viver muito na casa da Lia. Foi levando algumas coisas para lá, mas seguiu dividindo apartamento. De qualquer forma, sempre se sentiu muito “em casa” na casa da Lia, e ver lá como um lar, junto com as gatas e com o ambiente, fez ela sentir cada vez mais vontade de ficar. A Lia sempre fez questão de que ela estivesse à vontade também, então juntas emolduraram quadros e passaram a redecorar as coisas, até que a mudança foi definitiva.
Com o tempo passando, além do lar que representa em detalhes tudo o que são (como os cafés da manhã, os recadinhos, as decorações e as gatas), também fizeram diversas viagens juntas: coisa que elas entendem como uma reconexão. Qualquer viagem faz com que voltem muito mais íntimas, conectadas e estabilizadas.
Durante a pandemia, elas se casaram. Foi num cartório, quando tudo ainda estava fechado, usando máscara e face shield, só com os padrinhos presentes, que assinaram os papéis. Antes de sair de casa, Lia fez uma maquiagem na Thalita e uma arrumou a outra. Depois do cartório almoçaram juntas e ao anoitecer fizeram uma live com os convidados - cerca de 300 pessoas estiveram na chamada ao vivo festejando-as.
Contam o quanto foi legal, simbólico e divertido. Num momento como aquele, na pandemia, todos estavam trancados em casa sem perspectivas. Entrar numa chamada e celebrar o amor durante algumas horas foi um sopro de esperança. Elas choraram muito, jogaram buquê fake, cortaram bolo, ganharam muitos presentes e souberam aproveitar de verdade! E, um tempo depois de casadas, oficializaram com uma viagem de lua de mel para a Bahia. ♥
Por fim, fizeram questão de serem fotografadas pelas ruas de São Paulo - como fotos de casamento - como uma maneira de falar sobre a importância do nosso amor ocupar as ruas, estar em público. Não há como fecharem os olhos para o que acontece nas ruas e por isso estão sempre se envolvendo politicamente. Na pandemia, por morarem no centro da cidade, viram de perto como tudo piorou. Não há como esconder ou fechar os olhos para isso, e ao sair de casa elas não conseguem não se sentir afetadas pela falta de políticas públicas para a população. Seus posicionamentos também representam que enquanto não mudar para os outros, para toda a população que segue na rua, para cada povo marginalizado, também não mudará para elas.