Laura estava com 26 anos no momento da documentação. É natural de Sapiranga, uma cidade interiorana do Rio Grande do Sul, mas mora em Porto Alegre há cerca de 8 anos. Chegou na cidade para estudar dança e hoje em dia trabalha com dança dando aula em alguns projetos para pessoas com deficiências intelectuais e para crianças. Paralelamente, também é professora de inglês, trabalha em uma instituição que promove imersões na língua inglesa. Nessas imersões, ela mistura a dança, outros professores entram com esporte, culinária e a ideia é fazer o inglês ser praticado em um ambiente de “vida real”. Fora do meio profissional, Laura entende que é uma pessoa bastante ligada à família. Foi sua família quem a colocou na dança, alguns familiares são músicos e sempre agradece o ambiente cultural que cresceu e que vive até hoje, percebe o quanto isso fez com que ela se tornasse alguém que adora estar entre as pessoas, gosta de se aventurar e de conhecer o mundo.
Roberta estava com 26 anos no momento da documentação. É natural de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. Durante a adolescência se mudou para a capital para estudar na faculdade e começou a trabalhar como educadora social num clube para pessoas com deficiência. Esse trabalho durou seis anos (e é um dos lugares que a Laura trabalha hoje em dia). Conta que foi trabalhando lá onde mudou sua forma de pensar sobre a vida, ainda mais no mundo que vivemos hoje em dia com redes sociais onde tudo tem filtro e é tão perfeito - pensado o tempo todo, medido e tendo que estar sempre lindo. Lidar com pessoas com deficiência é entender a sinceridade e a realidade da vida: elas falam o que querem falar, de uma forma simples e muito mais fácil, então aos poucos Roberta sentiu que era melhor ser assim do que viver nesse “filtro” que não era real. Falar o que sentia, ir onde quer ir, não ir onde não quer, ser mais real consigo mesmo. No meio desses aprendizados, criou um curso chamado “Ação Caminhos Para a Diversidade” sobre anti capacitismo, abordando temas como sexualidade da pessoa com deficiência, oportunidades de trabalho e privação da maternidade. Todo esse processo de estudo fez Roberta entender muito sobre si, sobre quem ela é e estudar sobre seus comportamentos sociais. Hoje em dia, observa que existe outra Roberta, principalmente depois da pandemia de Covid-19. Uma Roberta muito mais caseira, que adora arrumar a casa, fazer decorações, pintar e criar coisas manuais.
Quando Laura chegou na faculdade, em 2017, entrou para um projeto de extensão chamado Diversos Corpos Dançantes, uma proposta de dança com habilidades mistas envolvendo pessoas com e sem deficiência. Laura era bolsista e foi a primeira vez que trabalhou com práticas de danças acessíveis, lá conheceu uma amiga e passaram a estudar bastante sobre acessibilidade juntas.
Em 2019, Laura fez uma mobilidade acadêmica e foi estudar em Salvador, nos meses que ficou fora sua amiga começou a trabalhar num lugar novo - e conheceu Roberta. Na versão de Roberta, quando ela conheceu a amiga de Laura, só ouvia falar sobre Laura: “Tu me lembra muito a Laura”, “Nossa você e a Laura iriam se dar muito bem!”... Era tanto que passava um pouco dos limites. Quando Laura voltou de Salvador, soube da existência da Roberta e, durante uma Mostra de Dança Inclusiva, em novembro, elas se conheceram. Roberta ia se apresentar com os alunos, estava com uma roupa azul, toda pintada, brinca que parecia um grande pavão. Quando viu Laura entendeu o motivo de todos aqueles elogios que ouviu por meses. Mas, naquela época, Roberta vivia um relacionamento, estava noiva e só entendeu o nervosismo porque achou Laura admirável, mas não aconteceu nada além. Naquele contexto começaram a se seguir nas redes, mas não interagiram. Nos meses seguintes a pandemia de Covid-19 chegou, Laura voltou para a casa dos pais no interior, Roberta terminou o relacionamento e suas vidas passaram por grandes mudanças.
Um tempo depois, no meio da pandemia, Roberta estava respondendo uma brincadeira no Instagram e postou sobre estar solteira. Laura respondeu a brincadeira, iniciando um flerte… Roberta jamais esperava essa resposta e ficou bastante nervosa, ignorou ela por alguns meses, não se sentia preparada para flertar, enfrentava momentos delicados na pandemia e quando se sentiu pronta começou a interagir melhor.
Durante uma parte da pandemia, Laura trabalhou com algumas ações de dança na internação psiquiátrica do hospital, então acabava tendo um grande contato com a área da saúde e precisava fazer testes a cada 3 dias. Isso influenciou na demora para se encontrarem, até que marcaram um almoço num feriado. Depois do almoço, Laura queria logo comer as outras coisas que seriam para comer mais tarde (pão, bolo…) e pediu se Roberta se importaria. Ela achou positivamente engraçado, mas disse que não, que adoraria, e na hora que Laura se levantou do sofá disse que gostaria de fazer algo antes de buscar o bolo, assim beijou Roberta pela primeira vez. Hoje em dia, virou um bordão: quando levantam do sofá, soltam o “mas antes, quero fazer uma coisa” e se beijam.
O começo do namoro foi bem rápido e aconteceu depois de alguns encontros e conversas onde alinharam o que sentiam sobre o que estavam tendo e o que pensavam sobre as relações humanas e amorosas. Num dia, Roberta saiu da casa da Laura e deixou ela no apartamento ‘trancada’ pois só tinham uma chave, precisou comprar uns remédios, entregar um objeto e no caminho encontrou um amigo que chamou para sentar num bar e atualizar as novidades. Ela contou: “Conheci a mulher da minha vida, tô apaixonada!”.
Demorou mais que o previsto para voltar, quando chegou encontrou Laura fazendo yoga na sala com um olhar sério, chamando-a para conversar. Pensou: “Meu Deus, ela vai terminar tudo, acabei de falar que tô apaixonada e que é a mulher da minha vida e agora vou voltar lá no bar e dizer: acabou!”.
Laura disse que não queria mais ser uma “futura namorada” para Roberta, que cansou desse termo, e que estava disposta a namorar agora. Roberta lembra da sensação de pavor que sentiu, falou “Nossa, guria, que cagaço tu me deu!”. Começaram o namoro e meses depois foram morar juntas por questões financeiras, num apartamento que viveram durante pouco mais de um ano. Sentem que tudo fluiu muito bem, mesmo sendo no começo da relação, morarem juntas foi a escolha mais racional. A única coisa que se arrependeram foi o fato de Laura ter virado a síndica do prédio, isso causava mais stress que qualquer outra coisa, e não compensou o desconto nas contas. Mas hoje, é uma parte até cômica da história, virou “história boa pra contar - a síndica sapatão do prédio”.
Roberta e Laura contam como o período das enchentes em Porto Alegre foi impactante e marcante para elas, como é importante documentar esse momento vivido, além da importância histórica e política, mas também pela forma que se cuidaram e seguem apoiando até hoje por contas das marcas e atravessamentos que causou. Já estavam morando no apartamento que residem atualmente - e consideram isso fato importante porque no local que moravam meses antes da enchente certamente teriam perdido muitos itens pessoais e móveis, por ser no térreo e numa região que foi bastante atingida. Porém, mesmo nesse novo lar em andares superiores, ainda estavam sem água e luz, com a rua alagada. Foram para a casa de amigas em um bairro vizinho. Três dias depois, o bairro também foi afetado e as águas subiram rapidamente.
Ficaram sem saber para onde ir, até conseguirem um apartamento vazio e irem juntas para lá. Foram dias dormindo no chão, comendo coisas prontas porque não havia como cozinhar, ficando sem tomar banho… Chegaram no limite, até Laura pedir para a mãe dela vir de Sapiranga buscá-las. Era um caminho delicado porque as estradas estavam difíceis, ela tinha bastante medo. Um caminho que leva até menos de 1h em dias comuns, levou 6h naquele dia.
Quando chegaram na casa da família de Laura e tomaram um banho, comeram arroz, se olharam entre todas as mulheres e refletiram tudo aquilo que estavam vivendo, viram o significado de união e de família. Entendem que a experiência das enchentes foi muito sensorial: ouviam os helicópteros, as ambulâncias, sentiam a falta d’água, a falta das coisas nos mercados… Todas as dores de ver quem amam perdendo suas coisas, o medo, a insegurança. Foram momentos muito difíceis. Era muito importante reconhecer estar vivendo esse momento com mais duas mulheres, se ver enquanto amigas se apoiando, LGBTs, nossas famílias. Foram duas semanas vivendo em Sapiranga até voltarem para Porto Alegre e participarem da reconstrução da cidade - e entendem que tudo o que acontece até hoje é parte dessa reconstrução. Até hoje pagam as contas de luz daquela época (porque passaram meses sem conseguirem medir), Laura passou a trabalhar muito mais depois do acontecimento, entendem que existem várias consequências que silenciosamente estão presentes no cotidiano e na saúde mental, por isso o acolhimento e o lar enquanto lugar seguro são prioridades dentro da relação.
Laura sente o amor presente na rotina, na construção da relação. Quando lembraram sobre a vivência das enchentes em Porto Alegre, reforçaram quanto apoio existiu. Brincam que tinha um dia para cada uma ficar mal “Hoje estou mais triste, então você me apoia, amanhã você fica mais triste que aí já vou estar fortalecida e te apoio…”. Era a forma que encontravam de segurarem a barra no momento extremo, mas entendiam que era uma forma de proteção também.
Agora, após alguns anos juntas, visualizam que passaram pelas suas finalizações na universidade, pela pandemia, pelas enchentes, por duas casas, montaram um novo lar juntas… Então, foram encontrando o balanço, a rede de apoio, formaram a família que gostariam de ter. Laura comenta que quando começaram a namorar, fazia apenas dois meses que seu pai faleceu por conta da Covid-19, e Roberta acompanhou seu luto recente. Eram dois sentimentos conflitantes: a dor grande por perder um amor e uma paixão chegando com um novo amor. Foi um processo novo para Laura e, ao mesmo tempo, um processo que Roberta acompanhou de perto a família de Laura vivendo, visto que são muito unidos. O amor também esteve nesse lugar de acolher desde o início.
Roberta conta que aprendeu uma nova forma de amar, com uma nova comunicação, com maior liberdade e saindo de lugares traumáticos. Aprendeu a sair de lugares em que precisava fazer tudo sozinha, aprendeu que pode confiar, aprendeu a dividir algumas tarefas que parecem tão básicas mas que sobrecarregam… Nas palavras dela: descobriu que o amor é possível. E, junto da relação, ganhou a nova família - a família da Laura e a família que deseja construir com a Laura, agora que estão com os planos de entrar na fila de adoção em breve.
























