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Naiara estava com 58 anos no momento da documentação. Se dedicou 32 anos ao serviço público, sendo 29 deles no Tribunal do Trabalho, na área de Tecnologia da Informação, período em que participou da informatização completa do órgão, da migração do papel para os sistemas digitais. Antes de qualquer profissão, sempre se reconheceu militante: desde os 13 anos, quando começou a entender o que era ser mulher e pensar sobre gênero e sexualidade. Em toda sua vida esteve presente em movimentos políticos, sindicais, LGBTs e de mulheres, construindo muita participação na luta. Nasceu em São Jorge, no interior do Rio Grande do Sul, mas foi morar em Porto Alegre quando ainda era bebê e lá cresceu, trabalhou, conheceu a Mery, começaram esse relacionamento que já dura 40 anos… e criou suas raízes. 

 

Mary estava com 73 anos no momento da documentação. Nasceu em Porto Alegre, na rua Lima e Silva, uma das principais do bairro Cidade Baixa, mas confessa que nunca deixou de ser “bicho do mato”. Depois de um curto período morando com a avó, novamente na rua onde nasceu, voltou para Viamão, cidade vizinha de Porto Alegre, para viver com os pais, que estavam começando a construir a vida por lá. Trabalhou desde muito cedo, com carteira ‘de menor’ assinada, e se aposentou cedo por conta disso, aos 45 anos. Sua carreira se baseou mais de duas décadas em uma empresa imobiliária, no setor de microfilmagem - uma profissão que praticamente desapareceu com a tecnologia, mas ela explica: cada documento que passava pelo condomínio chegava às mãos dela, que filmava, e assim viravam um rolinho de filme. Quando começou a trabalhar, ainda sendo ‘de menor’, jogava vôlei e era apaixonada por esportes. Foi quando questionou sua sexualidade pela primeira vez também. 

 

Ainda que as dúvidas vieram na adolescência, Mary lembra que, ainda criança, “namorava as bonecas” e era reprimida pela mãe - e por si mesma. Da mesma forma era cobrada pelos pais e por si mesma. Mas no fundo, conta que se ganhava uma boneca ou um sapato, ficava magoada. Queria mesmo era uma bola. 

 

Quando começou a jogar vôlei, Mary ainda não havia se envolvido com nenhuma menina. Tinha apenas admirações platônicas difíceis de nomear… e o esporte se tornou também um espaço para entender o que estava acontecendo. Trabalhando muito cedo, ouvia conversas pelos cantos do refeitório na ‘firma’ sobre existir uma casa/uma boate cheio de bicha, de sapatão. Um dia, entre os seus 17/18 anos, criou coragem e foi lá. Era o início da década de 70. Conta que ficou nem quinze minutos, saiu assustada. Foi o impacto de ver no mundo real aquilo que tentava ignorar, a materialização de pensamentos que achava que não poderiam existir. Não eram só coisas da cabeça dela.

 

Depois de uma viagem de férias, surgiu um jogo de futebol entre empresas e ela foi convidada a participar. Afinal, jogava bola desde criança nas ruas de Viamão e, apesar de se machucar nesse primeiro jogo, foi ali que começou a jogar de verdade e conhecer mulheres lésbicas de verdade. Diferente do vôlei, no futebol pareciam falar mais sobre as coisas. Lá se aproximou de uma amiga - que era a tia de Naiara e foi quem as apresentou -  e passou a conviver frequentemente com as “entendidas” ou, em brincadeira, as “cebolas”, referência a um time de São José do Norte (cidade referência na plantação de cebolas) cujas jogadoras/treinadoras/diretoras eram todas lésbicas. 

 

No futebol, enfrentaram dificuldades e muitos preconceitos. Como Mary mesmo diz: “Nessa época, jogar futebol era perigoso”. Com a criação do Parque da Marinha, criaram o time Marinha do Brasil. Defendendo Porto Alegre no Citadino, um campeonato. Só conseguiam treinar depois das dez da noite porque a elite ocupava as quadras do Parque Marinha até tarde. Muitas vezes foram expulsas violentamente, quando tentavam chegar antes. Contaram com a ajuda dos homens negros de Alvorada, que também treinavam depois das 22h, e que as treinaram por quase um ano, ensinando fundamentos, jogadas e resistência. O ambiente era perigoso, e todas trabalhavam, então saiam cansadas e iam jogar bola. O futebol era coisa da periferia e não havia jogadora que vivesse apenas do esporte ou de estudos. Quando venceram o campeonato, foram junto aos homens negros, numa grande comemoração. 

 

Mary jogou durante muitos anos, tanto que, aos 33 conheceu Naiara - mais de dez anos depois de ter iniciado nos jogos. Quando já estavam juntas, namorando, houve um torneio de empresas e Mary sofreu o primeiro bullying que foi muito marcante em sua vida. Após atingir uma colega com a bola, ouviu insultos e comentários muito violentos, sendo humilhada diante de toda a empresa. Chorou muitas vezes ao lembrar, o que magoava era que poucas pessoas, como a Nai e mais alguns amigos, ficaram ao lado dela, ainda que ela não tivesse feito nada de errado. A culpa era ela ser uma mulher lésbica, como se isso a tornasse agressiva demais, como se quisesse ‘virar homem’. Fala sobre isso destacando a importância de terem se mantido sustentando juntas as dores - e as vitórias - de tantos momentos marcados por coragem, e de tanta história importante para a nossa própria comunidade LGBT.


 

 

A vida delas mudou numa dessas noites de boate, quando Mary foi encontrar a tia da Nai e acabou esbarrando com ela. Tocava uma música brega que elas contam rindo, com vergonha, e a tia insistiu para que Mary tirasse Nai para dançar. Ela assim o fez e lançou logo uma cantada, horrível, e a Nai não retribuiu. Mary brinca: “Ela foi embora, me deixou no meio do salão!” mas Nai desmente, diz que não foi assim, só foi uma cantada ruim mesmo. Continuaram se encontrando aos poucos, até que finalmente deu certo. Mas tinham medo da reação da tia, afinal, se envolverem já era um passo a mais, Nai estava fazendo 18 anos e Mary já tinha 33. Levou meses, praticamente um ano, para se tornar de fato um namoro. 

 

Com a convivência crescendo, Mary começou a circular entre o grupo de amigos da Naiara - obviamente bem mais jovens - e que adorava a presença dela porque ela tinha carro, proporcionava carona e passeios mais adultos. A intimidade, porém, era difícil de dar certo: ambas moravam com os pais, não tinham muita privacidade, a não ser na casa da Mary. Foi então que alugaram um apartamento simples no bairro Menino Deus, entre 1984–1985. A verdade é que ninguém sabia sobre elas, sempre foi como se fossem boas amigas. Na rua, a dificuldade era outra porque Mary evitava qualquer demonstração de afeto em público, temendo que Nai fosse agredida por causa dela. Foi muito tempo para conseguirem conversar sobre e mudar os atos, sobretudo trabalhar a militância lésbica. Com o tempo, construíram uma vida conjunta. Nai fala uma coisa muito importante sobre essa formação: de que muitas mulheres lésbicas começaram a passar em concursos para poder ter a certeza que não seriam demitidas e, só assim, assumirem suas vidas, pegarem nas mãos na rua sem medo. Como foi o caso dela. Ela sempre pôde falar mais por ser concursada.

 

Anos depois, compraram uma casa em Viamão - grande, acessível e perto da família da Mary - e ficaram ali por vinte anos. O lugar virou ponto de encontro: churrascos, aniversários, amizades que entravam e saíam como num clube familiar. E a própria convivência da relação também enfrentou diversas barreiras internas e externas. Nai admitia ter preconceitos em relação ao futebol de Mary, e ambas viveram momentos marcados pela transfobia estrutural da época. Mary, por exemplo, chegava a se travestir de homem para conseguir sair de Viamão até Porto Alegre durante a noite e voltar em segurança. Essas camadas mostravam como o relacionamento delas se entrelaçou com a construção de uma comunidade LGBT que buscava sobreviver, existir e ganhar voz. Ao longo dos anos, se reconheceram de muitas formas, algumas que não fazem mais parte de quem são (como essa visão transfóbica que existiu por um momento), e também se reconheceram nas muitas mudanças individuais.

 

 


 

Mary e Nai carregam hoje uma família enorme: onze sobrinhos, dois sobrinhos-netos, e o reconhecimento, desde sempre, como um casal diante de todos eles. Agora voltando a morar em Porto Alegre, num apartamento menor, falam muito sobre o ato de envelhecer juntas: não com peso, mas com essa lucidez de quem olha o mundo e percebe o quanto ainda precisa mudar. Veem gente jovem repetindo ideias de décadas atrás, enquanto elas seguem se atualizando, se abrindo, se movendo. “A idade não engessa quem não quer”, dizem.

 

Foram muitas coisas vividas nos últimos anos também: Nai enfrentou o câncer enquanto, no mesmo período, Mary sofreu dois aneurismas cerebrais. As marcas permanecem, especialmente para Nai, que ainda lida com dificuldades deixadas pelo tratamento. Mesmo assim, transforma tudo em ação: pensa em projetos de lei, busca articulação política, tenta abrir caminhos para outras pessoas viverem processos menos exaustivos que os seus. Conversamos sobre como cansa existir em estruturas que já são adoecedoras e, ainda assim, precisar lutar o tempo todo.

 

O pai da Mary faleceu em 2025, aos 93, tendo passado os últimos anos sendo cuidado por elas. A mãe de Nai, agora com 90, segue sendo cuidada por elas também. E observando esse cuidado, elas não deixam de pensar e falar sobre como desejam viver a velhice juntas. Sem depositar nas irmãs, nos sobrinhos ou na família grande a responsabilidade pelo que virá. A mudança da casa para o apartamento veio desse pensamento: perceberam que viviam mais em função da manutenção do espaço do que da própria vida. Hoje, planejam o futuro com a serenidade possível. Sabem que o tempo diminui a agilidade, a disposição, a vontade… mas não diminui o amor. Ajustam rotinas, fazem escolhas, reorganizam o que for preciso para permanecerem lado a lado, do jeito que sempre quiseram: com lucidez, coragem e a leve rebeldia de quem nunca deixou de construir uma relação - diga-se de passagem, de mais de 40 anos.

 Ana Naiara 
 Mary 
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