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A Joyce e a Lorrayne entendem que o relacionamento delas já chegou numa fase em que não existe mais a ansiedade da expectativa, ou seja, querem estar juntas porque estão dispostas a isso. Não despejam uma expectativa gigantesca uma na outra, sentem que fazem o que gostam e não precisam se vestir de forma impecável ou estar sempre de bom humor todos os dias. Com a maturidade, a naturalização dos corpos foi se construindo aos poucos. 

 

Hoje em dia moram em uma casa que elas mesmo construíram. Na zona periférica de Belo Horizonte, vivem em uma ocupação de terras que antes era um local improdutivo e hoje recebe centenas de famílias. Na ocupação sempre foram tratadas enquanto uma família - e ressaltam como essa representatividade é importante. Por alguns anos, todos os salários que ganhavam voltava ao lar: na compra de materiais de construção, mantendo as contas em dia e pensando em uma decoração para a casa.

 

Hoje em dia, dentre todos os cômodos que construíram e tudo o que aprenderam (fazer massa, assentar forma) é a parede de tijolinhos que mais se orgulham. Sempre sonharam em ter uma parede desse jeito, com os desenhos, pinturas e bordados que fazem pendurados nela. Foram anos planejando porque haviam outras prioridades a serem feitas e hoje se orgulham de finalmente ter conquistado. 

Quando relembram tudo o que já viveram juntas, falam que realmente amam a companhia uma da outra, fato que ficou ainda mais evidente na pandemia, quando dentro de casa o vínculo se fortaleceu perante as dificuldades que enfrentaram.

 

Não sentem que vivem entre controles, ciúmes possessivos ou coisas do tipo entre elas ou familiares e amigos. Entendem que estarem juntas é algo que escolhem diariamente e depositam sua fé nesse sentimento. Claro que valorizam muito as conversas, a terapia, o cuidado com o corpo e a mente para se manterem bem. Não querem projetar as relações dos outros nas suas, então exercem a conversa e verbalizam o que sentem. 

 

Entendem que amar é se sentir feliz, assim como ver e querer o outro feliz. Por isso, não se enxergam numa relação solitária. 

 

A Lorrayne conta que tinha uma ideia de amor muito romântica, ligada aos livros de romance que lia… e que essa ideia também é um tanto doentia: A sensação de não ter a pessoa amada é igual a morte, o pedestal que existe para o amor, etc. Hoje em dia enxerga tudo de forma mais leve. Cita que ama os almoços de domingo, os dias que passam juntas sem fazer nada em específico e que assim ela se sente muito mais realizada amando a Joyce. 


No momento da documentação a Joyce estava com 31 anos. Ela é bordadeira e, além de vender os bordados, começaria um trabalho enquanto vendedora em breve. 

 

A Lorrayne, no momento da documentação, estava com 28. Ela trabalha enquanto desenvolvedora de sistemas, na área da tecnologia, fazendo estágio - mas também consegue diversos freelas, o que acaba ocupando todo o seu dia. 

 

Brincam que são duas velhas, amam ficar em casa e na pandemia isso se agravou ainda mais. Além disso, por morarem em um lugar distante do centro, se torna inacessível estar saindo o tempo todo pelo valor do transporte, acabam se apegando em atividades mais caseiras.

 

Quando se conheceram, de forma online há muitos anos atrás - mais especificamente na transição do Orkut para o Facebook - interagiram numa postagem que a Lo fez dizendo que estava se sentindo triste. A Joyce soube quem era a Lo e a adicionou nas redes por conta de um amigo em comum, que falava muito sobre ela, e acabou descobrindo um blog que ela escrevia textos, poemas, contos e desabafos. Naquela época, Joyce nunca tinha ficado com uma mulher, mas até comentou com o amigo que se ficaria, gostaria que fosse com a Lo. 



 

Um tempo depois de terem interagido na postagem, se adicionaram no MSN (saudades, né?) e conversaram por três horas, falando de músicas e outros assuntos que surgiam, onde perceberam que tinham muito em comum. No decorrer daquele ano (2011) conversavam de vez em quando durante a semana; A Joyce passou pela experiência de ficar com a primeira mulher (que não foi a Lo! mas uma pessoa na Parada LGBT de Belo Horizonte), passou um mês na casa da bisavó de férias e, quando voltou para Belo Horizonte, ainda na rodoviária, ligou para a Lo diretamente de um orelhão marcando um encontro. 

 

Se encontraram no dia seguinte na pracinha de bairro próxima aos locais em que moravam, Joyce estava super insegura de ir, mas encarou e levou uma flor para a Lorrayne, que estava sentada na pracinha desenhando e achando que iria levar ‘um bolo’. Joyce brinca com a música da cantora Letrux que diz “Meu look eu pensei o dia inteiro/Só pra te encontrar” e quando chegou lá toda arrumada viu a Lorrayne vestida de qualquer jeito, com chinelo e meio desengonçada. No momento não falou nada, mas a piada surge até hoje. 

 

Joyce era muito comunicativa, enquanto a Lo ficava mais tímida, mas deu certo. No segundo encontro marcaram de ir ao cinema, em Contagem (cidade da região metropolitana de Belo Horizonte) e tiveram a infelicidade de serem assaltadas. Depois disso, passaram a se encontrar pontualmente nas segundas-feiras, porque a Lorrayne fazia aula de desenho próximo à casa da Joyce e, como não era assumida, elas conseguiam se encontrar sem precisar dar muitas desculpas. 

 

Nesse período começaram o namoro e assim seguiram pelos próximos dois anos, namorando e estudando na mesma faculdade. 


Foi durante o processo de estudos que aconteceu a ocupação de terras onde elas residem hoje. Nessa época, a Lo cuidava dos irmãos mais novos, enquanto ela e Joyce desejavam morar juntas pelos problemas que enfrentavam com a família. 

 

Sendo jovens e com muitos sonhos, decidiram procurar casa para alugar desesperadamente. Estavam com 21 e 18 anos, enfrentavam diversas barreiras na hora de alugar e o fato de terem um cachorro (o Vovô, que aparece nas imagens documentadas) acabava piorando pois nenhum lugar aceitava animais. Adotarem o Vovô, inclusive, foi um processo muito importante para elas; Ele ficava próximo do trabalho da Joyce e era um animal muito bravo, portanto tinham medo que acabassem matando-o pela agressividade que tinha ao atacar as pessoas. Foram 2 meses tentando a aproximação até conseguir acolher e levá-lo para a casa, portanto, jamais abririam mão dele. 

 

A mãe e a irmã da Lorrayne conseguiram casa na ocupação e ela e a Joyce ajudavam na luta: desde as reuniões, os atos e as manifestações pela terra. No momento inicial a Lo até morou com elas, em uma época que tinham um cômodo apenas, o banheiro e cozinha eram espaços coletivos da ocupação. Nesse momento, Lo até aponta para o sofá em que está sentada, falando que ele vem desde àquela época: o espaço em que dormiam.  



 

Como a irmã acompanhava a saga delas por uma casa em que pagassem aluguel, deu (e insistiu) na ideia de que elas colocassem seus nomes na lista de famílias da ocupação e tentassem um local para construir e morar. 

 

Acabaram conseguindo por algumas desistência e/ou outras famílias que não seguiam as regras de convívio. O terreno era pequeno, havia uma vizinha bastante bagunceira e acabaram enfrentando muitas dificuldades no início - não havia janelas, entravam muitos bichos como ratos e acabavam não conseguindo ver aquele local como uma casa de verdade. Até que conseguiram trocar de moradia - pagavam somente o material de construção usado - e, depois de duas mudanças, chegaram na casa em que estão hoje, o lugar que entendem como lar. 

 

Logo de início fizeram um muro para soltar os cachorros, depois uniram dinheiro para construir um banheiro e outros cômodos. Hoje em dia, nessa última (e atual) casa, com os cômodos mais elaborados e da forma que sonhavam (construíram o segundo andar, fizeram um mezanino etc), entendem que tudo foi muito árduo, mas necessário. Estão completando cinco anos nesse novo local e agora a irmã mais nova da Lo divide a casa junto com elas. 



 

Dentre todas as dificuldades, contam como foi construir em meio à pandemia. Naquele ano (2020) choveu muito em Belo Horizonte, então a obra que duraria 2 meses acabou triplicando em tempo, enquanto elas viviam em três pessoas sob um espaço que chovia dentro, tinha cimento para todos os lados e toda a sujeira incomodava muito. 

 

Entre o trabalho, faziam parte do corpo de funcionárias da creche da comunidade, então conseguiram receber auxílio mesmo nos tempos mais fortes de Covid-19, mas a regra era simples: todo o dinheiro ia para a construção. 

 

Durante a pandemia, também, o grupo de teatro que a Lorrayne faz parte passou em um edital para realizar apresentações na comunidade, o que ajudou muito a se manter em contato com a arte e trazer renda para a casa.

 

Entendem como é bom ter realizado as coisas. Não foi nenhum pouco fácil viver todas as dificuldades que viveram, mas sentem muito orgulho em ver a casa montada. Ressaltam que fazer isso, enquanto mulheres, é ainda mais grandioso. Sempre existe alguém para apontar e dizer que não será possível, homens querendo nos ensinar a fazer coisas mínimas, opinando em algo que não cabe à eles e fazer a casa da forma que sonham é um firmamento muito grande sobre quem são. 

Hoje em dia, adoram os processos artísticos que fazem juntas (mesmo que a Lo faça parte do time de tecnologia, ela estudou artes por seis anos) e se dedicam aos bordados, à pintura e ao desenho. Além disso, amam jogos, no tempo livre gostam de assistir séries e filmes e fazer refeições juntas.  

 

Mesmo com as grandes dificuldades financeiras e desentendimentos que aconteciam no começo do namoro por depositarem muito de relações alheias sobre elas, hoje dão muito valor ao entendimento do corpo e da relação enquanto algo político. Lo comenta que a sociedade não as considera uma família, então fazem questão de trazer a naturalização do amor delas para todos, seja no ambiente de trabalho, entre a comunidade ou a família. Ao ver as pessoas da creche que trabalhavam (mães, pais, funcionários e crianças) tratando o amor delas enquanto algo natural, como merece ser tratado, percebeu o quanto importa essa luta coletiva. 

 

Por fim, fazem questão de dizer o quanto a sociedade precisa de mais acolhimento mental. Pouco se vê de investimentos nessa área, as terapias são caras e não há propagandas governamentais sobre isso, portanto desejam viver num país em que principalmente as mulheres que estão na base tenham cuidados mentais garantidos. 

 Lorrayne 
 Joyce 
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