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Cláudia estava com 54 anos no momento da documentação. É natural de Castanhal, interior do Pará, mas mora há anos em São Miguel do Guamá e é apaixonada pela cidade e pela região. Sua vida sempre foi atravessada pela arte, caminho que se intensificou quando morou em São Paulo por 15 anos. A mudança inicialmente era temporária, planejada para apenas dois anos de trabalho, mas acabou se prolongando quando ela decidiu continuar morando lá.  

 

Antes mesmo de se sentir sozinha em São Paulo, encontrou acolhimento na comunidade budista (que já fazia parte desde sua moradia no interior paraense) e decidiu seguir na capital, sabendo que tinha com quem contar.  Nesse período, ingressou em uma escola de cerâmica, primeiro como agente administrativa. Aos poucos, sua curiosidade pela prática cresceu, até que se aproximou do laboratório e do torno. Um dia, vendo o laboratório vazio enquanto limpava, se arriscou e sentou para moldar uma peça. Como ela mesmo diz, “levantou” a peça do barro. E surpreendeu: quando voltaram, perguntaram quem foi que havia feito aquilo, pois havia ficado muito bom. O fato é que enquanto outros levavam anos para conseguir levantar a primeira forma, ela, apenas observando o processo, levantou de primeira. Apaixonada pelo barro, a cerâmica passou a ocupar um lugar central em sua vida.

 

Depois de cinco anos distante do Pará, sem contato com conhecidos da região, decidiu retornar. Foi nesse reencontro com suas raízes que retomou o contato com a Vanessa (que conhecia desde criança). E é nessa volta que mais um momento da vida delas se cruza, mas não chega ainda a caminhar lado a lado. 

 

 

Vanessa e Cláudia se conheceram ainda crianças, quando tinham seis e nove anos. Cresceram muito unidas e, na pré-adolescência, a ligação entre as duas era tão perceptível que a mãe de Cláudia decidiu afastá-las, mandando ela para Manaus, com a desculpa de que iria trabalhar. O que seria uma temporada curta, apenas uma viagem como um experimento, acabou se estendendo por dois anos. Mesmo assim, sempre que Cláudia retornava (dessa ou de outras viagens que vieram a acontecer com frequência), as duas encontravam formas de se falar, ainda que de maneira breve e improvisada. Na adolescência e já adultas, mantiveram os encontros, guiados pelo boca a boca das pequenas cidades - todo mundo contava que Cláudia estava chegando, seja de barco ou de ônibus, até porque não havia celular ou internet para que se comunicassem. E nisso, havia também os desencontros: vez ou outra, Vanessa sabia tarde demais, Cláudia já havia partido de volta. 

 

Essa história, que foi se estendendo por boa parte da vida delas, também foi marcada por afastamentos. Ambas viveram outros casamentos, outras relações, construindo trajetórias paralelas. Um episódio marcante aconteceu quando tinham cerca de 30 anos: se reencontraram em Santa Maria, no interior do Pará. Cláudia chegou uma semana antes do que havia avisado à família, apenas para garantir o encontro com Vanessa, não deixando ninguém imaginar. 

 

No momento da documentação, Vanessa estava com 51 anos. Nascida em Salinas, vive há muitos anos em São Miguel do Guamá e também é apaixonada pela cidade e pela região. Foi pioneira numa das principais rádios locais, é uma figura importante falando sobre os direitos da mulher na cidade e tem diversas histórias relacionadas às figuras políticas locais. Sua trajetória e de Cláudia se entrelaçam o tempo todo com as histórias da cidade, afinal, desde que estão juntas dedicam todo o seu tempo para melhorar o lugar em que vivem. 


Vanessa lembra de uma cena que marcou a relação e a juventude delas: a mãe de Cláudia procurando sua mãe, conhecida como ‘Tia Alice’, para propor um trato: “Fique de olho na Vanessa, que eu vou ficar de olho na Cláudia, porque nessa idade pode acontecer qualquer coisa”. Para Vanessa e Cláudia, ainda adolescentes, aquilo foi doloroso e confuso. Não compreendiam ao certo o que havia por trás da vigilância. Faltava conhecimento, consciência e até mesmo uma certa malícia. Não sabiam nomear o que sentiam.

 

Com o passar dos anos, Vanessa se casou, mas quando sua mãe adoeceu enfrentou muitos problemas na relação. A pessoa com quem se relacionava entendia que o adoecimento da mãe era um problema só dela e, por isso, ela não via mais sentido na relação, não se sentia numa relação de parceria. Nesse período, do nada, enquanto estava no hospital com a mãe, recebeu um telefonema: de Cláudia. Ela chegou a duvidar do que via na tela do telefone. “É você mesmo?”. 

 

Claudia chegou não só trazendo a lembrança de algo que ainda estava vivo, mas a companhia de poder compartilhar o cuidado, o carinho. Juntas, viveram o tempo do cuidado à mãe de Vanessa até ela falecer. Foi nesse reencontro que o amor, tantas vezes interrompido, reencontrou também seu espaço para existir.


A mãe de Cláudia nunca conseguiu compreender como esse amor sobreviveu a tantas tentativas de separação - ela mesmo confessa. Hoje, porém, dá o braço a torcer e reconhece a força de um sentimento que resistiu ao tempo e às distâncias. Vanessa e Cláudia, por sua vez, também não sabem explicar com exatidão como, depois de tantos desencontros e caminhos diferentes. Talvez, precisasse mesmo ser assim. O que importa é que agora vivem “a vida é de nós duas”, como elas mesmo dizem, sem a necessidade da aprovação ou opinião de terceiros.

 

Com a decisão de viverem juntas, assumiram não apenas o relacionamento, mas também uma paixão em comum: a cerâmica. Aos poucos, foram conquistando espaço e reconhecimento na cidade, criando laços através do trabalho artístico. Mantiveram seus empregos formais, mas logo passaram a ser conhecidas como ceramistas talentosas, com diversas encomendas.

Há cerca de oito anos, Vanessa adoeceu. Foi diagnosticada com uma doença raríssima, esclerosante e degenerativa, somada à fibromialgia. O quadro grave fez com que Cláudia precisasse deixar o trabalho para cuidar dela em tempo integral, numa rotina com muita incerteza e sofrimento. No começo, desmaiava muitas vezes por dia, foi cogitado estar com câncer durante oito meses e chegaram a se despedir algumas vezes antes de terem o diagnóstico correto, mas Cláudia sempre dizia o quanto elas batalharam muito para ficarem juntas, não era agora que ela ficaria sozinha. Depois do diagnóstico e de acertarem os remédios, Vanessa respondeu com firmeza: teve uma melhora e pode seguir o tratamento em casa. 

 

Sem poder trabalhar e enfrentando limitações severas, elas sobreviveram graças às doações dos amigos. Pessoas das cidades vizinhas se mobilizaram, trazendo frutas, legumes, roupas e alimentos de bicicleta, partilhando o que tinham em suas casas. Mesmo sem nunca pedirem, a rede de afeto se formou de maneira natural, mostrando como eram queridas e como o amor que construíram ao longo da vida foi retribuído.

 

Hoje, a doença está mais controlada, ainda que não consigam seguir uma rotina de trabalho, conseguem produzir algumas peças de cerâmica. A casa foi adaptada, o ateliê também. Celebram a chance de viver plenamente um amor que resistiu a tantas tentativas de apagamento e sentem a realização não só por estarem juntas, mas por verem o amor transbordando para os amigos, aproximando a família e inspirando os que conhecem suas histórias. 

 Cláudia 
 Vanessa 
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