Paula estava com 34 anos no momento da documentação. Nasceu em Porto Alegre, mas passou boa parte da vida em Maceió com a mãe, indo visitar a família no sul poucas vezes ao ano. Formada em Direito em Maceió, trabalhou em empregos temporários até retornar ao sul, onde hoje atua como servidora pública. Carrega consigo essa sensação de deslocamento - não é totalmente de Maceió, nem de Porto Alegre. Uma gaúcha nordestina - algo que molda uma personalidade mais fluida, tranquila e aberta às mudanças.
Carla estava com 29 anos no momento da documentação. É natural de Maceió e foi lá que conheceu Paula, ainda no período em que ela morava no nordeste. É advogada, formada em sua cidade natal e concluiu a graduação já vivendo em Porto Alegre, após se mudar no meio da pandemia. Carla se destaca por ser cheia de hobbies: corre, borda, gosta das coisas manuais, dos esportes (é faixa preta no karatê desde os dez anos de idade) e entende que manter o corpo em movimento traz a disciplina e o equilíbrio que a hiperatividade demanda.
O que as aproxima, além dos caminhos cruzados que a vida fez, é a forma como se completam: brincam com os signos, pois são opostas complementares, mas entendem que vai um pouco além disso. Paula é quieta, reservada, enquanto Carla transborda movimento e, como ela mesma diz, é tagarela - uma fala pelas duas quando necessário, a outra observa, absorve e oferece silêncio seguro.
Carla sempre brinca dizendo que elas se conheceram porque ela era estagiária da Paula, gosta de começar a história assim. Mas Paula desmente porque ela era estagiária na empresa, não dela especificamente. Deixam interpretação livre: “Tu escolhe em quem tu vai acreditar!”. Fato é que as duas apenas trabalhavam no mesmo lugar, cada uma com sua rotina, seus horários, seus trajetos dentro do prédio.
Para Paula, esse emprego era temporário, e foi num dia em 2018 que sua mãe anunciou: estava prestes a se aposentar e queria retornar ao sul, não moraria mais em Maceió, depois de tantos anos. O convite veio de forma natural: “Tu não quer voltar junto?” e a resposta foi natural também, ela acreditava que nada a prendia em Maceió, então pensou que poderia prestar algum concurso no sul e fazer a mudança para lá. Duas ou três semanas depois dessa conversa com a mãe, ela conheceu a Carla.
A amizade foi o primeiro lugar. Ambas tinham terminado relacionamentos recentes, conversavam muito sobre suas dores, histórias em comum e até acompanharam as histórias das pessoas que ficaram depois dos términos. Como Carla era mais nova, Paula pensava que algo entre elas “jamais” aconteceria. Mas a convivência se estreitou - e a resistência capricorniana de Paula não resistiu aos quatro shots de tequila que beberam numa noite. Quando começaram a se envolver romanticamente, tentaram manter um pacto: não transformar isso em algo maior, sabendo que a Paula tinha data para ir embora. Bom, sabemos o resultado, né?
Alguns meses se passaram e Paula tentava ao máximo ‘empurrar’ adiar a ida, mas precisou partir para Porto Alegre, em 2019. Dirigia muitos quilômetros chorando, até que sua mãe, vendo o sofrimento, falou: “Minha filha, se tiver que ser, vai ser. Vocês vão dar um jeito, vai dar tudo certo, se tiver. Também se não tiver, não vai.”. E assim elas começaram um novo passo na relação: o namoro à distância.
Depois da mudança de Paula para Porto Alegre, Carla fez a primeira visita quando tudo se estabilizou. Foi em maio de 2019, o auge do frio para uma nordestina conhecer o sul, que desembarcou na capital querendo conhecer um destino romântico clássico: Gramado. Elas explicam que desde a primeira vez que concordaram em viver essa relação à distância, tinham uma coisa muito marcada: a escolha consciente de permanecer. Entre idas, vindas e incertezas, sempre escolheram ficar. E, embora a história pareça redonda contada assim, “depois que passou”, foi muito difícil enquanto estava passando… o caminho foi marcado por coisas além das distâncias, como homofobias, conflitos familiares e feridas que só foram cicatrizando com o tempo e com a convivência.
Ao longo desses sete anos, elas seguiram escolhendo viver juntas, construindo algo sólido. Conversar sempre foi a essência de tudo. Carla brinca que elas não ficam quietas, estão dissecando cada pedacinho das coisas para estar 100% com tudo. São tagarelas assumidas. E o namoro à distância ajudou a moldar esse hábito: viviam conectadas, entre Skype e FaceTime, indo dormir em chamada, cozinhando ao mesmo tempo, até indo ao cinema cada uma no seu estado. Destacam também sobre como saber que são amigas é importante dentro de uma relação amorosa, é poder confiar muito em quem você ama.
Até hoje, qualquer detalhe visto na rua é assunto e é compartilhado entre elas, entendem que o compartilhar é parte natural de amar. E Paula destaca também que nessas trocas, desde cedo falavam em casar e ter filhos, mesmo enquanto repetiam que viveriam um dia de cada vez. Havia uma certeza silenciosa: seguir adiante faria sentido porque o futuro delas já existia, mesmo quando ainda era só um plano.
No final de 2019, Carla voltou para Porto Alegre para passar três meses, mas precisou retornar a Maceió no início de março de 2020 por conta das aulas na faculdade. Foi exatamente quando a pandemia de Covid-19 estourou: aeroportos fechados, voos cancelados e aquele período pequeno que iria resolver as coisas em Maceió viraram meses de isolamento. Além do medo e da incerteza do momento, havia também o peso das situações de homofobia dentro da própria família, que tornavam tudo ainda mais delicado. De qualquer forma, sabiam que nada poderia ser feito de forma precipitada. Era importante que Carla terminasse a faculdade, que cuidasse da própria vida individual antes de qualquer mudança definitiva, faltava muito pouco para conseguir o seu diploma. Quando, finalmente, em junho de 2020, conseguiu um voo, Carla veio de vez. Ficaram um tempo morando com a mãe de Paula, e foi ali que Carla apresentou o TCC, se formando de forma online na pandemia - e já residindo em Porto Alegre.
Em março de 2021, com a OAB em mãos e já adaptada morando em Porto Alegre, Carla começou a procurar emprego como advogada e as duas decidiram que era hora de ter a própria casa. E foi nesse mesmo período que veio a vontade de celebrar o amor. Depois de tantos obstáculos, medos, partidas e retornos, parecia justo transformar tudo isso em um rito de afirmação. Optaram por um casamento simples, íntimo, com poucos convidados, mas cheio de significado. Marcaram a data exatamente no aniversário de três anos de namoro e foi assim, no terceiro ano juntas, que se casaram.
Ainda que alguns familiares não tenham participado do casamento, outros estiveram presentes e os amigos da Carla vieram diretamente de Maceió, então foi um momento incrível de celebração. O casamento firmou o que elas constroem: a escolha, a continuidade e a coragem.
Carla conta que quando elas andavam de mãos dadas como namoradas em Porto Alegre, as pessoas não olhavam muito… Mas, quando a barriga apareceu, tudo mudou. As pessoas entendiam, se surpreendiam, sorriam. E havia também aqueles pequenos gestos silenciosos: como o casal de meninas que, numa feira, se cutucou mutuamente ao vê-las juntas. Tipo: “Caramba, é possível!!”, uma esperança. Era bonito perceber que elas também podiam ser referência para outras mulheres, para outras famílias que ainda estavam começando a imaginar a própria possibilidade de existir. Porque, antes de tudo, elas sempre sonharam com isso: uma família, um lar, uma criança para amar. E porque pouco tivemos referências quando foi a nossa vez.
O caminho até ali vinha sendo construído aos poucos, elas já eram uma família, com o cachorrinho, depois com a decisão de engravidar. Na primeira tentativa o teste deu positivo. E de um pontinho de luz, como dizia a médica, surgiu a Olivia.Decidiram viver os três primeiros meses só entre elas e os médicos, guardando o segredo como quem protege uma chama acesa no peito. Começaram a contar pela mãe da Paula, que ficou perdida, surpresa, feliz, curiosa, tudo junto! Falou: “Tá. Entendi. Mas tá em quem????” e riram. Tudo se ajeitava.
A parte mais delicada foi contar para a família de Carla. Depois de anos de rupturas, medos e afastamentos, ela foi sem expectativa alguma. E, justamente por isso, a surpresa foi tão imensa. A mãe reagiu com alegria, tentou adivinhar o sexo, vibrou por haver mais uma menina na família, dizendo que “Nossa família é uma família de mulheres!”. Em nenhum momento reclamou pelo fato de Paula ser quem estava gerando, pelo contrário: houve carinho, acolhimento e vontade sincera de reparar o que havia sido quebrado. Quando Olivia nasceu, a avó veio até Porto Alegre, e foi assim que ela e Paula se conheceram pessoalmente. Hoje, se Carla passa um dia sem mandar foto, a mensagem chega rápida: “Cadê a Olivia?”
Paula falou uma frase muito marcante na nossa conversa: “Que gostoso que é ver o amor da sua vida sendo mãe do amor da sua vida” e isso mostra como a Carla é uma mãe incrível para a Olivia. Ela só dorme com a Carla, o primeiro sorriso foi para ela, a primeira troca de fralda foi com ela. Nas noites difíceis elas se apoiam, nas crises de choro, na amamentação que machucou o peito ou nos medos do que ainda pode acontecer. E nos risos no meio do caos, lágrimas divididas, cansaço partilhado é onde está a força também. A maternidade não mudou quem elas eram (ok, talvez mudou um pouquinho pra melhor!), mas principalmente tornou mais nítido o que sempre existiu.

























