Juliana estava com 47 anos no momento da documentação. Natural de Salvador, é bibliotecária na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Já morou em várias cidades interioranas devido ao trabalho, e também é apaixonada por história e turismo, o que a fez cursar um MBA na área - se apaixonando, principalmente, pela história baiana. Bianca, por sua vez, estava com 43 no momento da documentação e também nasceu em Salvador. É técnica de TI. formada como analista de sistemas.
Juntas desde os anos 2000, quando ainda cursavam faculdade, enfrentaram uma jornada de muitos desafios. Bianca, já segura de sua identidade lésbica, encontrou Ju num momento em que ela ainda enfrentava muito preconceito dentro de casa por descobrirem que se relacionava com mulheres. No começo, havia vivido um relacionamento com outra mulher - que até surgiam dúvidas de entender se era mulher ou homem gay, era uma sociedade com nomenclaturas muito falhas, entendiam enquanto um ser andógeno, mas para a Ju sempre foi algo muito natural, nada forçado, gostava dela assim - a questão é que a descoberta desse relacionamento trouxe conflitos intensos na família, com muitos episódios de rejeição e controle.
Esse período turbulento acabou por uni-las ainda mais quando se conheceram. Decidiram morar juntas logo no início, construindo uma vida longe do preconceito e embarcando em um ciclo de mudanças. Cada nova cidade trouxe a oportunidade de vivenciar culturas diversas dentro da Bahia, um aprendizado que valorizam profundamente. Sempre que uma precisava buscar um novo trabalho, a outra acompanhava, foram anos vivendo uma parceria que hoje em dia entendem como a base do amor.
Bianca acolheu Juliana nos momentos mais difíceis, quando o preconceito da família de Ju tornou insustentável sua permanência em casa. A situação passava muitas vezes do limite: alimentos e produtos de higiene eram separados e chegou a tomar banho com sabão em pó. Além disso, havia fofocas constantes na vizinhança por causa do relacionamento com outra mulher.
Decidir morar juntas foi uma decisão necessária, e além disso, libertadora. Juliana reconhece que não foi expulsa de casa, mas a convivência havia se tornado muito dura. Sair de casa foi uma escolha para viver o amor com Bianca e também para dar um basta nas condições opressivas que enfrentava, até uma nova chance de lidar. Até porque, mesmo antes de conhecer Bianca, Ju vivia o preconceito - a relação lhe deu impulso para mudar. Ainda morando com a família, começou a buscar empregos nos anúncios de jornal e conseguiu uma bolsa na faculdade, o que a mantinha fora de casa durante o dia todo.
Elas se conheceram por intermédio de uma amiga em comum. Ju não tinha o hábito de sair à noite, mas foi jantar com a amiga, que mencionava Bianca com frequência. Apesar de inicialmente relutantes sobre se envolver, naquela noite a amiga insistiu e Ju foi até Bianca, no outro lado da cidade. Quando chegou, Bianca disse para o amigo: “Essa é a menina da minha vida.”
Foram em um dos bares gays da cidade - lugares chamados de GLS na época. Contam que a maioria dos bares gays limitavam um dia da semana para as mulheres frequentarem, outros elas entravam mesmo sendo - obviamente - minoria. Hoje, olhando para trás, Ju reflete sobre o quanto tudo já mudou – e o quanto ainda precisa mudar. “Naquela época, tudo era sobre ser ‘entendida’, mas entendida de quê?”, ela questiona. Hoje, fala com mais leveza sobre ser uma mulher lésbica, mas deseja um futuro onde rótulos sejam desnecessários. “Sonho com o dia em que não precisaremos justificar quem somos, onde seremos representadas na mídia de forma natural, porque estamos em todos os lugares na vida real. E queremos estar de forma segura.”
Com apenas três meses de relacionamento, Juliana e Bianca decidiram morar juntas. Montaram seu primeiro lar em um bairro periférico, com poucos móveis, um cachorro e a certeza de que queriam construir esse relacionamento. Enquanto a família de Bianca frequentemente as visitava no início por morar nas proximidades, a família da Ju, que ainda não aceitava o relacionamento, não sabia onde exatamente ela morava.
Cinco anos depois, a mãe da Ju decidiu se reaproximar, quis conhecer Bianca e entender como a vida delas estava. Esse reencontro foi bastante significativo, e ela ainda se dispôs a ajudar a comprar um apartamento e sair do aluguel. Hoje, a relação com as famílias é tranquila, mas a real prioridade dentro da relação é cuidar da parceria que constroem há mais de 24 anos, sempre com dedicação e amor, e seguir nessa manutenção diária para que as coisas sigam bem.
Consideram as muitas mudanças que já passaram juntas, desde as cidades que já moraram no interior, principalmente sendo tão jovens e podendo ter a liberdade de viverem como um casal fora de Salvador, até montarem outros lares e enfrentarem a vida uma ao lado da outra. No começo, tiveram bastante receio e o preconceito que viviam dentro de casa se espelhou nos outros lugares, então demoraram para se assumir enquanto casal nos espaços de trabalho e nas novas amizades, mas hoje em dia tudo mudou e fazem questão de chegar deixando claro quem são, com orgulho, sem necessidade de se esconder num lugar que não lhe cabem.
Ju e Bianca adoram olhar para trás e reviver os 24 anos de caminhada que construíram juntas. Para elas, o tempo só parece real quando percebem as mudanças ao redor: as crianças da família que agora são adultas, os primos que seguiram seus próprios caminhos, os amigos que já consolidaram suas carreiras. É ao revisitar essas transformações e observar o quanto seus próprios trabalhos e vidas evoluíram que se dão conta de tudo o que viveram. No entanto, isso não significa que se acomodaram - ainda têm muitos projetos e sonhos que anseiam alcançar.
Talvez não sentem o peso dos 24 anos porque eles nunca foram monótonos. Marcados por constantes movimentos, com altos e baixos, desafios e mudanças. Não houve tempo para tédio ou estagnação, e essa sede de vida as manteve sempre ativas e motivadas. Nos últimos anos, o ritmo mudou um pouco: já não passam o dia inteiro juntas, trabalham em lugares diferentes, o tempo que compartilham durante a semana é mais limitado. Por isso, os finais de semana ganharam um significado mais especial, é o momento de reencontro e presença.
Para Bianca, o amor é a vontade de estar junto todos os dias, aceitando tanto as coisas boas quanto as ruins. Ao pensar nas dificuldades que enfrentaram, ela afirma sem hesitar que viveria tudo novamente, pois foram escolhas conscientes e, acima de tudo, vividas com amor. Ju acrescenta que elas se tornaram uma referência de amor para amigos e familiares. Mesmo sendo diferentes - uma mais aventureira e a outra mais quieta - se complementam na maneira de enfrentamento à vida.
























