Foi num período em meio a pandemia que Rafaela decidiu submeter seu projeto para estudar mestrado em Santa Catarina, ainda sem esperanças, porque não conhecia ninguém na universidade e no Estado. Ela e Alissa moravam em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e trabalhavam na área da saúde. Foi vivendo etapas longas do processo, e para a sua surpresa, passando em todas. Até que em dezembro de 2020 teve a resposta: foi aprovada! Se olharam e entenderam: “Vamos nos mudar para Santa Catarina!”.
Organizaram toda a vida e no dia 7 de abril de 2021 estavam a caminho de Araranguá, cidade no interior do estado, onde começariam tudo de novo. Dizem que no começo foi difícil de “não endoidar”, era só elas, uma pandemia, a cidade conservadora e ninguém que conheciam. Mas aos poucos foram recebendo as visitas das suas famílias que adoram visitá-las por conta da praia (adoram tanto que parte da família hoje em dia se mudou também!) e criaram um grupo bem legal de amigos.
Precisaram se apoiar muito, essa foi a base para tudo dar certo. Alissa voltou a estudar, desta vez em Criciúma, cidade próxima - e que hoje em dia é o lugar onde moram por conta da facilidade de mobilidade/trabalho/estudo - acharam fundamental se assumirem enquanto família, não escondiam mais quem eram, andavam de mãos dadas na rua, falavam nas entrevistas de emprego que tinham uma companheira, desde o início deixavam claro às novas amizades para combater o preconceito… Esconder-se não era mais uma opção. E, aos poucos, foram encaixando a vida nesse novo lar.
No momento da documentação, Alissa estava com 25 anos. Ela é natural de São Luiz Gonzaga, no interior do Rio Grande do Sul. Estuda educação física e ama praticar exercícios. Antes de cursar educação física também estudou engenharia elétrica por 3 anos em Santa Maria, neste curso fez parte do time atlético de handebol e foi aí que começou a paixão pelo esporte.
Rafaela, no momento da documentação, estava com 25 anos. É natural de Alegrete, também no interior do Rio Grande do Sul. É mestranda em ciências da reabilitação e pretende começar o doutorado em breve. Morou 7 anos em Santa Maria, onde fez faculdade e pós-graduação. Mudou-se para Araranguá, em Santa Catarina, por conta dos estudos, mas atualmente está em Criciúma, há cerca de um ano. Rafa nos conta que recentemente recebeu seu diagnóstico de TEA - transtorno do espectro autista - e que tem entendido mais as coisas depois que teve seu diagnóstico. Recebeu muito apoio da Alissa nesse momento, elas explicam que é muito difícil passar a vida inteira sendo algo que a gente não sabe o que é, não sabe nem nomear. Depois passou a entender suas oscilações de humor, ou sobre não gostar tanto assim do toque, de manter contato visual… Na relação, definiram detalhes para saber quando ela está bem ou não: como o bichinho de pelúcia, polvo do humor (Rafa coloca ele feliz ou bravo mostrando como está se sentindo no dia) e assim elas estão entendendo isso juntas.
Em março de 2019, quando Alissa era atleta do time de handebol da faculdade, Rafa entrou como fisioterapeuta. Logo na primeira interação, Rafa achou Alissa muito chata: era domingo, 8h da manhã e ela chegou animada com uma lista em mãos… Rafa pensou: “Quem tá feliz num domingo de manhã?”.
Na época, Alissa vivia um período de transição de entendimento enquanto mulher lésbica, achou a Rafa lindíssima, lembra que sentiu algo diferente e já comentou com uma amiga sobre. Os dias passaram e no final de semana de Páscoa elas precisaram viajar para jogar com o time, não teriam como visitar a família na volta e decidiram fazer um almoço em conjunto. Acabou que o almoço virou só delas. Conversaram muito e ficaram amigas.
Por serem profissionais do time não podiam sair à noite, saiam escondidas. Demoraram um tempo para entender que não queriam ser apenas amigas, foi um processo natural de intimidade (e que Rafa, hoje com o entendimento de ser uma pessoa com TEA e TDAH, passa a visualizar diferentes os detalhes daquela época), tudo foi acontecendo até o beijo se tornar um desejo em comum. Depois que se beijaram, se relacionam um mês sem contar para ninguém, até irem se abrindo para os amigos e para algumas pessoas da família.
Quando Alissa resolveu fazer o pedido, em junho do mesmo ano, preparou toda a casa, o quarto, fez várias coisas fofas… E na hora: travou. Brinca que era a primeira vez, ninguém a ensinou a fazer isso, não sabia o que dizer. Depois de algumas horas conseguiu pedir.
Alissa e Rafa tiveram algumas questões logo no início do relacionamento, principalmente porque Alissa não estava mais indo para a faculdade e levando os estudos à sério. Na época, ela focava no handebol e em sair para bares, aproveitar a vida. Rafa, por sua vez, era bastante focada nos estudos e não queria se relacionar com uma pessoa que não desse o mesmo valor à carreira, então teve uma conversa séria da qual disse que faculdade pública não era bagunça, que alguém estava pagando por isso e que Alissa precisava “se ajeitar na vida” = ou ela contaria aos pais que não estava estudando, ou Rafa contaria.
O problema é que se os pais soubessem que ela desejava cursar educação física, iriam fazer com que ela voltasse à sua cidade natal e estudasse lá. E se ela contasse, também, que estava namorando uma mulher, seria informação demais para assimilar ao mesmo tempo. O processo todo levou 8 meses para acontecer, e nesse meio tempo, a mãe da Rafa estava visitando ela e deu a ideia: “Chama a Alissa para morar aqui!”. Antes mesmo dela processar, Alissa chegou lá e a mãe mesmo fez o convite.
Aos poucos a família foi entendendo - e reconhecem como é muito bom ter uma família que ama e apoia. Ao passar dos meses Rafa conseguiu um emprego para Alissa de secretária no mesmo lugar que ela trabalhava enquanto fisioterapeuta, e assim viveram até o final do ano. Quando a pandemia de Covid-19 chegou, no início do ano seguinte, seguiram trabalhando por ser da área da saúde, mas já estavam com a vida mais estável financeiramente e batalhando pelos estudos.
Hoje em dia, entendem com clareza que Rafa trouxe a calmaria para Alissa, enquanto Alissa trouxe um pouco mais de agitação para a Rafa. A relação tirou ela de vários lugares (de conforto ou não) e trouxe um salto qualitativo. Alissa estava sem perspectiva, depressiva, Rafa a trouxe um novo olhar. Durante a nossa conversa, refletem que se não fosse a relação, talvez elas ainda estivessem naquela realidade ou vivendo ciclos de suas famílias, e que hoje saíram para crescerem juntas, estão muito maiores.
No momento atual da documentação, já morando em Criciúma, vivem uma rotina mais tranquila. Sair de Araranguá foi decisivo para isso acontecer, lá estavam tendo horários bem difíceis e mal se encontravam perante as rotinas.
Estão noivas, fizeram a primeira grande viagem juntas e estão construindo novos planos.
Acreditam que celebrar o amor com uma festa de casamento é o que elas merecem por estarem há 5 anos construindo esse amor. Brincam que adoram ser emocionadas, que no começo as pessoas falavam que isso iria passar, mas que até hoje fazem café da manhã e levam na cama, gostam de estar juntas e alimentam essa paixão. Sentem que fazer isso é manter o propósito do amor - e por consequência, da vida.
Alissa sempre se questionou muito sobre sua capacidade, enquanto Rafa sempre foi muito decidida, então aprende muito com ela. Rafa segura a sua mão e fala: “Vai, você consegue”. Agora constroem um legado juntas. “É: nós por nós”. Se apoiam nos medos, transformam em coragem.