Rita e Dede são as pessoas mais engraçadas possíveis. Confesso que esse foi um dos textos mais difíceis de fazer, porque a nossa história não começou através do Documentadas: conheço elas há anos, quando começaram a namorar, e quando eu, Fernanda, estava começando a me entender. O que o Documentadas é hoje em dia, essa vontade de fazer o projeto ser representativo para outras mulheres e meninas que estejam se descobrindo, vêm também do privilégio que tive ao ter contato com esse casal quando era mais nova e de ter entendido que sim, eu poderia ser uma mulher adulta, amando outra mulher adulta, sendo feliz, tendo qualidade de vida.
Nosso encontro foi regado de muito riso. Ou melhor, talvez uns 85% do tempo tenha sido puro riso. Fui recebida na casa/no sítio onde elas moram, em Criciúma - Santa Catarina.
Seria impossível começar a contar a história sem dois fatos importantes a serem ressaltados:
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Não sabemos realmente como tudo começou.
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10 reais é um investimento que pode valer muito a pena.
Explicando: Rita e Dede se conheceram através do famoso (e tão presente) rebuceteio, em 2012. Rita ainda morava com o pai do Caio (o filho, que agora, é delas ♥) e estava com mudança de planos, iria se mudar para outra cidade, porém teve um problema de saúde na família e precisou se manter em Criciúma. Ela ficava com uma menina de outra cidade, que conhecia outra menina, que estava ficando com “uma pessoa de Criciúma que estava precisando de uma psicóloga”... preciso falar quem era essa pessoa? a Denize, é claro. Na hora que a Dede chamou ela no MSN, ainda pensou “ai que louca né, coitada” porque foi tudo muito aleatório.
Elas acabaram criando uma amizade, conversavam bastante pelo MSN. Não se conheciam pessoalmente ainda e seguiam ficando com outras pessoas. Se viram, uma vez rapidamente, na Marcha das Vadias (evento responsável por eu ter conhecido a Rita também!) e depois marcaram de ir num jogo pela diversidade, na UNESC (a Universidade que a Rita trabalha).
Rita sempre esteve entre seus amigos drags, gays e travestis. Para ela, sempre foi muito importante estar com essas pessoas (e inclusive é um objeto de pesquisa dela, com o mestrado falando sobre crianças e adolescentes transgêneros). E Denize era de um lugar bem diferente, não tinha amigos nesse meio e mantinha um preconceito pelo forte estigma desses corpos.
Chegando no jogo, quando Dede viu os amigos da Rita, logo se assustou. Não quis ficar naquele ambiente. Tinha recém se assumido, ainda sentia certo medo e, ainda mais em cidade pequena, não queria ser vista lá. Ela disse para a Rita que iria no posto beber cerveja com uma amiga, mas na verdade tomou o rumo de casa.
Elas realmente não sabem quando a amizade virou flerte. Quando o sentimento se despertou mesmo. Brincam que o relacionamento começou na base do “duvido”, porque a Rita ia numa festa, a VOGUE (que inclusive eu também estava!). A Dede não iria, mas acabou brigando com a menina que estava ficando e a Rita disse “duvido você ir na festa”, então de última hora ela resolveu sair de casa. Brincamos que, se eu fizer uma clipagem no meu HD, posso ilustrar toda a história delas com fotos que eu mesma fiz, de vários momentos diferentes dessa relação
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No fim, o 'duvido' deu certo. A Dede foi e como não precisaria pagar a entrada, levou só os 10 reais que tinha em casa. Aí começa o investimento.
Ao invés de perguntar para a Rita o que ela estava bebendo, perguntou para um amigo dela. Quis fazer um gesto de “cavalheirismo” pensando que iria gastar 2 reais numa Antártica Sub Zero e que estaria tudo bem, mas na verdade a Rita tomava whisky com guaraná, ou seja, o combo custava dez reais. Decidiu comprar e fazer o agrado, mas passou o resto da festa se virando nos 30 para entreter - e a Rita ainda ficou chocada porque pensou que Dede tinha acertado a bebida favorita dela. A gente tenta, né?
Elas ficaram na festa. Dede foi embora mais cedo, Rita achou engraçado uma pessoa que não ficava na festa até amanhecer.
Nos dias que seguiram, sempre achavam um jeito de se encontrar. Denize conquistou o Caio logo de cara, ficaram inseparáveis (e são até hoje). Ambas moravam no centro da cidade e Rita começou a chamá-la para tomar um mate todo fim de tarde na praça, enquanto o Caio brincava, depois do colégio. Virou uma rotina: todo dia, Rita ia com o Caio para a praça e levava uma paçoquinha para a Denize, que saia do trabalho que ia direto ao encontro.
Rita tem 43 anos, é psicóloga, mestre em saúde coletiva e divide seu tempo entre trabalhar na empresa de contabilidade que elas abriram juntas e ser coordenadora da secretaria de diversidades e políticas de ações afirmativas na UNESC (a universidade local). Nas palavras dela: “trabalho 20 horas na UNESC e 246 horas no ecritório, mas a Denize não me dá um déciminho terceiro…”
Denize tem 38 anos - e brinca que não chega aos quarenta nunca! Queria alcançar a idade da Rita, mas nunca consegue porque sempre que tá chegando mais perto ela inventa de querer ficar mais velha também. Dede é administradora e contadora.
Elas estão sempre juntas, seja em casa, cozinhando, conversando pela casa, trabalhando, assistindo TV… ou seja na universidade. Denize acaba levando a Rita para uma vida social mais ativa (e agora, em pandemia, sente muita saudade de sair e ver gente). Em casa, elas aprenderam a fazer diversas coisas: construir, reformar, pintar. Fazer tudo. De vez em quando, a Rita coloca a mesa na rua e passa um longo tempo pintando, enquanto a Dede está construindo algum móvel ou montando coisas.
No começo do relacionamento, Rita ajudou muito a Dede a se reaproximar da família. Foi algo muito importante, pois depois dela terminar um casamento e se assumir houve um afastamento brusco. Hoje em dia são muito próximas e felizes.
No começo, também, Dede ajudou muito a Rita. Ela precisou sair de casa e acabou indo provisoriamente morar com a Denize. Não teve um começo exato, foi a necessidade. O Caio sempre foi muito apaixonado pela Dede e a relação delas estava indo bem, decidiram segurar o tranco juntas, mas com um prazo: duraria dois meses. Não preciso nem dizer que estão juntas até hoje, né? nem elas acreditaram que seria só dois meses. Passaram um tempo com o dinheiro bastante contado, Rita conseguiu um emprego de professora de matemática financeira (o que certamente foi um surto coletivo, porque ela mal consegue contar o dinheiro que têm na carteira) e ao menos o trabalho tinha plano de saúde. Desde a mudança, até as primeiras semanas, já sentiram que estavam se transformando em uma família - “foi tudo muito divertido”, elas descrevem.
Em 2013 decidiram que estavam prontas para assinar uma união estável e sonhavam com ter “uma casinha para sempre”. A casinha chegou, no sítio, e elas construíram cada pedaço juntas. Desde colocar o piso, montar estantes, sofás… até fazer a piscina (que era o sonho da Dede).
Hoje em dia, elas entendem que tudo possui o seu próprio tempo. Na empresa, cultivam clientes muito fiéis, gostam de trabalhar juntas. Na casa, tratam tudo com mais calma: plantam, colhem, constroem. Falam sobre nós, LGBTs, não queremos privilégios, mas sim nosso direito básico de viver com qualidade. A Dede comenta sobre a palavra não ter mais poder, o uso da violência se banalizou, normalizou. Gostaria de mudar, que as pessoas voltassem a lidar com as situações absurdas que vivemos como elas deveriam ser lidas.
Visitei a casa delas logo depois da Rita defender seu mestrado e ganhar um carro de presente da Dede. A chave veio no meio de um livro que obviamente a Rita não leria, só para fazer a surpresa ser mais divertida.
Por fim, mas não menos importante: o Caio quis muito, elas também, e formalizaram a adoção dele. Hoje em dia ele tem o nome das duas mães e do pai na certidão.
São, oficialmente, uma família.