Documentei a Hinde e a Renata num espaço muito querido para elas e para todos que frequentam (e já frequentaram), no Rio de Janeiro: a Feira da Glória. Passamos algumas horas do nosso domingo lá, em meio à feira, ao samba, aos artesanatos, às crianças, ao movimento de uma festa junina que acontecia por perto e ao público que passava de um lado para o outro.
Hinde e Renata não se conheceram no Brasil, Hinde, inclusive, não é brasileira - veio do sul da França para cá por conta do amor que sente pela Renata. E é na Feira da Glória que ela adora provar comidas novas, comprar roupas e descobrir o que os cariocas chamam de shoppingchão: os produtos dos ambulantes espalhados pelos chãos das ruas.
O tempo que passam juntas aos domingos servem para conhecerem mais uma a outra e também para ressignificar o que sentiam sobre a pressão de trabalhar nas segundas-feiras. Agora, longe do celular, curtem mais o tempo juntas, bebem uma cerveja, aproveitam a música, o ambiente e os amigos (que sempre surpreendem a Hinde no quesito: “como podem os brasileiros serem culturalmente tão sociáveis?!”).
Foi durante o intercâmbio da Renata que ela conheceu a Hinde, em agosto de 2018. O intercâmbio era em uma cidade muito pequena e tradicional, no sul da França, e a chegada da Renata sendo a primeira brasileira a estudar por lá foi algo que despertou certo interesse nos franceses, por ela ser uma mulher que se impõe perante os desafios: é jovem, assume sua bissexualidade, traz consigo as pautas que acredita e dá suas opiniões quando preciso.
Logo no início, um grupo de amigos se criou: um garoto que era apaixonado pelo Brasil e que virou amigo da Renata logo de cara, ela, mais algumas pessoas e a Hinde. Ela se sentia um pouco deslocada, achava a cidade pequena demais e as pessoas jovens demais, mas seguiu em frente. Com o tempo eles foram se dando bem, indo para diversas festas juntos e em algumas festas, quando ela e a Hinde estavam bêbadas, elas se beijavam. Hoje, a Hinde brinca: “O que é um ‘date’ para uma carioca? Você não sabe! Não dá para entender o que os cariocas sentem!” referindo-se àquela época, nunca entender o que a Renata queria.
Aos poucos, a Renata sentia uma certa paixão pela Hinde acontecendo, mas como era algo que só se beijavam em festas e mantinham uma amizade nos outros momentos ela não deixava passar disso - e também não tocavam nesse assunto.
Durante todo o intercâmbio foi assim. Nesse meio-tempo, a Renata chegou a se envolver com uma menina, o que até diminuiu esperanças na Hinde, mas não durou muito tempo e inclusive no momento de “término” elas trabalharam juntas em um evento. Neste dia, passaram muito tempo conversando, rindo e interagindo e a Renata disse “eu te amo” para a Hinde. Isso a pegou de surpresa, não imaginaria ouvir, assim, dessa forma. E tudo ficou muito suspenso, não tocaram no assunto depois, seguiram naturalmente.
Nas festas seguintes continuaram se beijando quando estavam embriagadas e mantendo amizade sóbrias, até que, no fim do intercâmbio os jogos universitários aconteceriam e depois disso a Renata iria para Paris, comemorar o seu aniversário, e voltaria ao Brasil. Elas viveram os jogos e no fim, ao se despedirem na estação, entenderam que não se encontrariam mais. Choraram muito, se abraçaram e deram o primeiro beijo estando sóbrias e em público. Depois da despedida a Hinde chegou a conversar com a mãe dela pelo telefone, ainda chorando muito e a mãe tentou a acalmar um pouco, mas não entendia tanto o motivo de tamanha tristeza.
Acabou que, ao chegar e viver os dias em Paris, a Renata decidiu não voltar ao Brasil após o aniversário. Conseguiu transferir a passagem e passou o verão por lá, trabalhando em sorveterias, sendo babá… Alugou um apartamento e viveu de freelancers durante a temporada.
Durante o verão em que a Renata continuou na França, ela e Hinde conversaram muito pelo celular e se sentiram muito próximas, coisas que não costumavam fazer com outras pessoas. Essa frequência de se falar todos os dias fez com que surgisse uma nova vontade de se encontrarem.
Logo após o verão, a Hinde precisava arranjar um projeto para ser voluntária por conta da faculdade, então ela encontrou um que conversava com o que precisava apresentar e que era localizado próximo de onde a Renata morava. Elas conversaram e a Renata topou hospedá-la por um tempo, para que ela conseguisse realizá-lo. Hinde comprou as passagens, foi para lá e depois de 15h de viagem chegou, usando vestido amarelo e salto alto (!!!).
A Renata trabalhava em uma loja de souvenirs e a Hinde esperou ela sair para irem beber vendo o pôr do sol. Quando elas estavam juntas, ela cantou uma música que se chamava “I Wanna Be Your Girlfriend”, tomaram vinho na garrafa e não entenderam direito o que estava acontecendo, sentiam que eram amigas, mas ao mesmo tempo, o sentimento se misturava com outro. No dia seguinte, Hinde passou num brechó e viu um anel lindo, comprou e decidiu tomar a decisão que queria há tempos: pediu ela a Renata em namoro. Ela aceitou e foi assim que começaram a namorar. Mas tinha um problema: Renata só tinha mais dez dias na frança, ela precisava voltar ao Brasil para terminar a faculdade e já estava com a passagem marcada.
Os dez dias aconteceram e foram incríveis. Viveram dias maravilhosos, muito felizes e a Renata voltou ao Brasil. Nessa volta, elas passaram 6 meses distantes. Se falavam todos os dias, mas não tinham ainda previsão de se encontrarem. Foi quando a Hinde decidiu fazer seu passaporte e comprar uma passagem para vir ao Brasil. Nessa mesma época, no dia da visibilidade bissexual, ela contou para a sua família sobre quem ela era, como ela se sentia e sua mãe perguntou: “É aquela menina brasileira que você está namorando?” por relacionar desde o dia em que ela chorou com a despedida da Renata na estação algum sentimento a mais que elas sentiam uma pela outra. Por mais que num primeiro momento a família não tenha tido uma boa reação, a mãe dela a apoiou e disse que era um ato muito corajoso o que ela estava tendo em se assumir e que admirava isso.
Foi então que a Hinde veio ao Brasil em 2019 e, logo depois, no começo de 2020 a Renata voltou para a França para passar uns dias. Ela conseguiu voltar ao Brasil antes da pandemia fechar os aeroportos por aqui, mas começou um novo momento muito difícil entre as duas, que era entender que meses as separariam pela incerteza de quando iriam se encontrar novamente.
O trabalho da Renata cobrava muito dela durante a pandemia, foram meses puxados e o fuso-horário entre ela e a Hinde não colaborava em nada. Foi então que ela se formou, conversou com o chefe e antes do ano encerrar e conseguiu uma ida para a França, tanto para desenvolver o mestrado por lá, quanto para encontrar a Hinde: ficaram dois meses juntas. Na volta, a Hinde retornou ao Brasil e seguiu aqui até nos encontrarmos. Hoje em dia os planos estão baseados nas duas se mudarem para a Europa, tentando estudos em Barcelona ou em novos caminhos que ainda chegarão por aqui. ♥
Atualmente, a Hinde está com 21 anos. Ela estudou ciências políticas e está se graduando. É natural de Saintes, mas também morou em Bordeaux. Independente da faculdade, seu sonho e seu maior talento é ser cantora. Quer viver da música, pagar suas contas, ser feliz no seu trabalho, se desenvolver na sua carreira através da sua voz. Ela acredita que todos os artistas possam ter direito de viverem da sua arte, não só os que já nasceram com o privilégio financeiro, e gostaria de ver artista pobre sendo reconhecido pelo o que ele é, por toda a arte que ele têm a oferecer.
Renata está com 24 anos, é natural do Rio de Janeiro, economista e trabalha com avaliação de políticas públicas. Além disso, faz parte de um projeto que conecta mulheres vereadoras e prefeitas às mulheres academicistas, oferecendo cursos de capacitação nos projetos a se desenvolver, e também está ajudando na reforma da graduação de economia da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Renata acredita que para mudar as coisas é preciso incorporar mulheres no orçamento público: um orçamento que olhe para mulheres trabalhadoras, homens que reconheçam suas paternidades, mulheres que sejam representadas pelas políticas públicas e mulheres que estejam ocupando cargos nos poderes públicos.
Quando falamos sobre todos os momentos difíceis que passaram, como os primeiros seis meses distantes logo depois de terem os primeiros dez dias namorando, elas explicam que o que sempre as mantinha seguir em frente e suportar a distância, a rotina longe, ver os amigos e não ter uma-a-outra por perto, era manter o pensamento de “logo ela vai estar aqui comigo”.
A Hinde brinca que esse pensamento na Renata era tão presente que quando ela chegou no Rio, se sentia famosa: a Renata contava para TODOS os amigos dela quem a Hinde era e todos já conheciam ela antes dela chegar (e ansiavam por isso). Se sentiu muito amada e acolhida.
Elas entendem que sempre foram muito amigas e isso também colaborou para que as coisas dessem certo. Nos momentos difíceis o sentimento que surge é o de não parar, não estagnar, sempre dialogar, desenrolar… mesmo na hora da briga, não se deixar esfriar. A distância dificulta porque o físico não existe, então tudo gira em torno da conversa, da chamada de vídeo e da saudade, mas isso reverbera quando se encontram e tudo gira em torno de muito afeto e movimentos para que nada estrague, que não existam desavenças e todos os segundos sejam aproveitados.
Elas sentem que estão sempre sorrindo juntas e que isso também é amor. As piadas em várias línguas e linguagens diferentes e o quanto se divertem. Para a Renata, o relacionamento dela com a Hinde significa estar em paz. Elas estão em paz entre elas e ela está em paz com ela mesma.