Quando a Cami decidiu entrar no internato militar, ela não passou na primeira vez porque precisava fazer uma prova de corrida e ela não conseguiu um bom desempenho, mas se dedicou e no ano seguinte já estava preparada. O primeiro ano lá dentro é realmente difícil, uma prova sobre quem tem psicológico e aguenta ficar, mas depois foi ficando mais tranquilo e ela decidiu seguir lá dentro. A vontade e a empolgação que tinham vendo os navios e a maior interação quando puderam conviver mais com as outras pessoas foi colaborando com a vontade de estar lá também.
E quando ela entrou, por ter tido uma boa colocação na prova (as pessoas que passam em primeiro lugar viram líderes de pelotões), virou líder e passou a ter uma presença muito forte, sendo muito cobrada. Foi assim que a Karol a conheceu, ouvindo falar dela e vendo ela circulando pelo espaço.
Elas não podiam conversar por um tempo, mas na primeira oportunidade, a Karol lançou diversos elogios por realmente ser uma figura que admirava: falou sobre a ver como uma guerreira lá dentro - e a Cami abriu um sorriso (que, diga-se de passagem, levou o coração da Karol embora).
Como elas não eram do mesmo ‘camarote’ (do mesmo espaço/pelotão), ficavam organizadas em ambientes diferentes e tinham pouco contato, mas com o passar do tempo passaram a se ver mais. Aos fins de semana a Cami saía para visitar a família e a Karol ficava lá e, durante a nossa conversa, conta que lembra de vê-la com outra roupa sem ser a farda e o quanto isso a marcou, dizendo o quanto era bonita e o quanto ela mexia com os sentimentos dela. Além de que, sempre foi completamente apaixonada por mulheres inteligentes e nessa posição a Cami já estava com a luta ganha.
Para quem não faz ideia do que seja a EFOMM, ela é a Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante. Lá, as pessoas passam por um concurso, fazem uma formação que dura cerca de três anos + um período de um ano em embarcações e, então, se formam. Hoje em dia, a Karol e a Cami seguem trabalhando embarcadas (enquanto oficiais de máquinas da marinha mercante - área de engenharia da embarcação), mas não possuem mais ligações diretas com a área militar, por mais que para sempre sejam consideradas militares da reserva não-remuneradas, ou seja, fora de serviço oficial.
É muito importante resgatarmos o quanto é um trabalho braçal e pesado, pouquíssimo feito por mulheres. Elas relatam a pouca presença de mulheres nos navios e como se sentem no meio disso tudo. Vemos as diferenças de tratamento entre a Cami, que transmite um estereótipo mais feminino e a Karol, que possui um estereótipo de jeito mais despojado e cabelo curto. Como os comportamentos masculinos mudam ao lado delas e como as posições em alto mar também.
Além disso, elas contam como é a vida de decorar um apartamento e viverem juntas enquanto passam tanto tempo longe fisicamente. A Camilla decorou boa parte do apartamento enquanto a Karol estava embarcada, desenhou as almofadas, fez muitas coisas nos cantinhos da casa. E cada vez mais compartilham as coisas quando as agendas se encaixam e elas conseguem ficar juntas.
Gostaria que esse texto pudesse expressar o sentimento que tenho de carinho pela tarde que tive na casa da Karol e da Camilla, pela admiração que sinto pela história delas e, também, pela gratidão (sem clichês nessa palavra) que tenho por elas me permitirem registrar esses tantos anos de relacionamento que começou de forma tão pouco provável.
Antes de escrevê-lo, não sei se de fato ele irá cumprir o papel, mas espero que ele sirva como um abraço à quem elas são e um presente à quem irá conhecê-las agora. Aproveitem e acreditem nas histórias improváveis!
♥
Acho que podemos começar assim: a Karol e a Cami se conheceram em um internato militar.
Mas antes de falar sobre o amor delas, queria explicar quem elas são.
A Karol é natural de Rondônia, de uma cidadezinha chamada Alta Floresta D’Oeste, mas como a família é de uma mistura brasileiríssima, ela foi morar em São Paulo quando era mais nova. Ela sempre curtiu bastante a área de exatas, mas não era muito dos estudos. Curtia também a área militar e queria fazer parte da esquadrilha da fumaça. Ela viveu o momento em que as mulheres começaram a ser incentivadas a participar do exército e nunca pensou em trabalhar em escritório ou alguma profissão relacionada a isso - inclusive, acha muito cedo a época em que somos obrigadas a escolher qual carreira seguir. Porém, antes mesmo de decidir o que iria fazer, aconteceu o que não esperava: ela foi expulsa de casa. E foi aí que ela investiu em estudar e passar no internato militar, afinal, era uma ótima opção para quem não tinha lugar para morar e nem para onde ir. Veio ao Rio de Janeiro para estudar na EFOMM.
A Camilla tem 24 anos, é natural do Rio de Janeiro e morou (quase) a vida toda na mesma casinha. Ela é uma mulher apaixonada pelas artes e pelo artesanato, já estudou na UERJ e descobriu o internato militar e a vida nas embarcações por conta do avô, que era dessa área e também trabalhava em navios. Ele contava das viagens, então ela conhecia as histórias e sabia que era uma profissão que pagava bem, foi por isso que decidiu se inscrever na EFOMM. Nunca foi algo muito sonhado, mas sempre foi algo que esteve ali. Se dedicou e passou no curso. Hoje em dia, ainda arrasa (e muito!) nos artesanatos.
Hoje em dia, no apartamento com os gatinhos, o cachorro e várias decorações lindíssimas feitas pela Camilla, elas vivem entre os encontros e reencontros um espaço de lar muito confortável.
A Cami comenta que sonha em juntar dinheiro e fazer alguma outra coisa voltada à arte e a Karol complementa: “qualquer coisa que ela pegar pra estudar, vai arrasar!”.
Quando pergunto sobre o lar e sobre o que, nesse momento da vida delas, elas identificam como amor, a Cami diz que amar é uma escolha. Desde escolher estar com a pessoa até aceitar essa pessoa e se sentir disposta a compartilhar a vida com essa pessoa. Ela sente que amar uma mulher é também uma escuta ativa, um entender, uma empatia. Está sempre se inspirando em outras mulheres e sente que as mulheres se entregam com muito mais facilidade. Disse também que, por mais que tenha tentado, não se viu capaz de amar um homem ainda, mas que não generalizaria no sentido de ser totalmente incapaz - mesmo reconhecendo o quanto as mulheres mostraram que a completam mais em muitos sentidos.
A Karol entende que o amor é feito na base da amizade e do diálogo e fica sempre muito feliz pensando no quanto ela e a Cami são realmente amigas. Por mais que o relacionamento delas já tenha envolvido brigas e já tenha sido essa montanha russa, para ela, tudo isso faz parte porque se trata de um amadurecimento conjunto. Não acha que o amor tenha gênero e forma para acontecer, que possa ser melhor entre mulheres ou não, porque muitas mulheres também podem ser bastante abusivas e trazer traços de machismos e do patriarcado que estão dentro delas de uma forma cultural.
Por fim, completa que o relacionamento não se resume sempre só em amor, mas na forma como a vida se construiu e se constrói diariamente.
♥
Hoje, antes de postar o texto aqui no site, falando com a Karol, ela me trouxe a notícia em primeira mão de que elas deram mais um passo nesse meio tempo desde que nos encontramos: e estão noivas! Muito amor pra vocês!
Perguntei para a Karol como era, para ela, essa sensação inicial de ser uma mulher, sapatão assumida, chegando num internato militar.
Ela disse que sentiu um medo no começo, mas que nunca pensou em esconder a orientação sexual dela. Quando chegou lá, logo no segundo dia, as mulheres já vieram perguntar para ela se ela realmente gostava de outras mulheres e ela achou tudo muito engraçado. No fim, ela não fazia questão de se relacionar com alguém na frente de todo mundo ou deixar os relacionamentos explícitos nos espaços em comum, mas também não se escondia. Fala que não sentia as coisas de forma absurda, mas que a vivência, em geral, foi tranquila. “As pessoas sabem que existimos e está tudo bem.”
Quando elas começaram o relacionamento, foi uma montanha russa de sensações. Nesses mais de 6 anos juntas, praticamente os primeiros 4 anos foram de relacionamento aberto, porque permitiam que ainda precisassem viver outras coisas. Não foi nenhum pouco fácil, mas conversavam muito e trabalhavam muito sobre o que sentiam. Enfrentaram distâncias, preconceitos muito pesados e por um tempo a Cami tentou se entender, se descobrir sobre o que sentia enquanto uma mulher que se relaciona com outras pessoas… foram muitos momentos diferentes entre duas pessoas que crescem e amadurecem.
E somente quando a Karol foi para o estágio dela (o período de um ano embarcada) que elas conversaram muuuuuuito e entenderam que realmente já tinha esgotado o tempo e que agora querem estar sozinhas - mas juntas. Foi então o momento que decidiram assumir um relacionamento sério, pensar em um lar, um apartamento aos pouquinhos, a vida e tudo foi acontecendo.
Com o tempo e com elas conversando enquanto amigas, a Karol foi entendendo quem ela era e como a cabeça dela funcionava, como ela foi criada e como as duas estavam em realidades diferentes. Enquanto eram amigas, a Cami chegou a se envolver com um menino e a Karol conheceu algumas meninas e saiu para várias festas no Rio.
Foi um tempo depois, durante um fim de semana no internato, em que a Cami estava lá por ter ficado de serviço, que elas estavam juntas e que já eram amigas o bastante para trocarem carinhos e serem mais próximas nas conversas (sem malícias, justamente, pela Karol entender que a Cami não a via com malícia), que elas passaram bastante tempo conversando juntas em uma noite. E, depois de uma amiga alertar a Karol algo como “você não vai mesmo ficar com a Cami???” e ela cismar que não porque jamais a Cami ficaria com uma mulher, ela tomou coragem para investir e com muita calma o beijo aconteceu!
Ressalto a calma porque tudo aconteceu muito aos poucos, com cuidado e respeito à primeira experiência da Cami e pela Karol saber que não era algo que ela já tivesse pensado sobre. Não queria um sentimento de invasão, de arrependimento no dia seguinte, de desconforto na amizade. Elas comentam que, se estão juntas há 6 anos, foi graças há tudo ser feito com tanto respeito à amizade lá no começo, não saindo atropelando todas as coisas, porque era um dos maiores medos da Karol naquele momento.
Depois daquela noite, elas passaram a ficar juntas todas as noites em seus camarotes, ou seja, em seus espaços dentro do internato. ♥
Por mais que a Cami tivesse uma posição muito importante e que exigisse uma maturidade imensa dentro do internato, ela sempre foi uma pessoa muito ingênua e teve uma realidade muito diferente.
Poucas vezes alguém lhe ensinou alguma malícia ou maldade no mundo. Ela foi criada por uma avó que casou absurdamente jovem e viveu a vida toda com a mesma pessoa, nunca foi alertada sobre sexo, sobre relações amorosas e sobre como essas coisas acontecem. A mente dela funcionava tal qual a ideia de que chegaria um príncipe encantado e que tudo ficaria bem, que o homem sempre seria perfeito e a respeitaria.
Ela nunca tinha conhecido o próprio corpo ou pensado sobre isso e também sobre mulheres ficarem com outras mulheres (na verdade, na nossa conversa ela falou sobre já ter visto uma menina lésbica no programa Ídolos quando era mais nova e que a família dela repulsou, mas que ela entendeu que pessoas se apaixonavam por pessoas, porém nunca se permitiu pensar sobre quem ela gostaria de ficar).
E essa ingenuidade e desconhecimento da Cami fez com que ela tivesse muitos casos de desconforto na vida sob relacionamentos - desde coisas que, para quem já se envolveu sexualmente, são realmente muito básicas e ela achava muito desrespeitosas, até colocar inúmeras barreiras que faziam com que os relacionamentos não acontecessem de fato.
No começo, quando a Karol teve sua paixão quase que platônica por ela e lançou uma brincadeira em estilo de cantada, recebeu em troca um corte gigantesco. E, quem dera, ela soubesse, que esse corte nem planejado tivesse sido, porque de tamanha ingenuidade a Cami nem se dava conta das coisas serem assim levadas na maldade. Era tudo muito mais simples na cabeça dela.