Hoje em dia elas brincam que não chegaram a namorar porque a Aline não deixava elas namorarem, nunca quis assumir esse namoro porque não queria prender alguém naquela vida. Mas brincam porque passavam o dia das namoradas juntas e inclusive a Aline comprou um presente de dia das namoradas pra ela e desistiu de dar por esse medo de assumir algo que fosse contra o que ela ideologicamente dizia - mesmo que elas soubessem que, no fundo, estavam juntas. Acreditamos que a brincadeira existe hoje em dia justamente por entendermos que isso era um processo dela entender o seu próprio tempo, porque naquele dia mesmo, a mãe dela inclusive estava radiante e super feliz por elas estarem juntas ali comemorando o dia. E a própria relação da Dani com a mãe da Aline era algo que sempre mexia e tocava muito ela também.
Nesse começo de relacionamento que não era relacionamento (mas era! hahaha só não conta pra elas, tá?), a Dani se mudou de Friburgo para Miguel Pereira, também no interior do Rio, e depois, em Miguel, surgiu a oportunidade de voltar a morar no Rio de Janeiro. Nessa época a Aline havia se mudado para o Rio há pouco tempo atrás com a mãe e, quando elas já estavam aqui, tudo foi acontecendo e acharam um local perfeito do qual conseguiriam adaptar todo ele para que fosse confortável manter a nova vida delas enquanto um casal, a mãe com suas necessidades e poderem bancar financeiramente as cuidadoras e enfermeiras que o momento pedia para auxiliar no dia a dia dentro de casa.
Era muito natural que a mãe da Aline fosse pensada em primeiro lugar e isso nunca foi visto como um peso ou algo sofrido para a Dani. Inclusive, era bastante o contrário. O carinho com que ela trata e relembra dos momentos que tiveram juntas é algo realmente emocionante. A mãe da Aline era uma pessoa que, mesmo enfrentando um momento muito difícil, nunca deixou de ser risonha, leve e brincalhona… e a Dani a acompanhava nas brincadeiras. Estavam sempre se divertindo. As cuidadoras mesmo, até hoje, frequentam a casa delas e dizem o quanto sentem saudade do lugar onde moravam todas juntas. A Dani comenta sobre ter sido um encontro, realmente, um encontro de pessoas que estavam dispostas. Ela entende que talvez se fosse outra pessoa, não conseguiria aguentar ou não estaria disposta. Mas para as três foi natural, elas estavam ali. Não era nenhum pouco fácil, mas a Dani era um contraponto, era uma alegria, uma diversão, alguém que chegava e alegrava.
Quando se conheceram, a Dani morava em Friburgo, no interior do Rio de Janeiro e a Aline morava em Nilópolis, na baixada fluminense. Elas conversaram rapidamente no aplicativo e a Dani não continuou muito o assunto, se sentiu com pouca confiança, com o papo chato. Por outro lado, a Aline nem se quer pensou que ela tinha papo chato, pelo contrário, se questionou com um “nossa, por que será que ela parou de falar?” e tudo ao redor colaborou com o afastamento porque a Dani ficou sem internet e era feriado de Páscoa… porém a Aline aproveitou o feriado e puxou um novo assunto, mandou um simples: “Feliz Páscoa!”. E era o bastante para a Dani entender que ela não estava sendo chata, que a Aline queria conversar e seguir aquele papo deixado de lado anteriormente… deu certo! A partir de então, conversaram dias e dias até se encontrarem pessoalmente, no Rio de Janeiro.
É impossível falar de como começou a história da Aline e da Dani (ou contar a história da Aline e da Dani, sendo o começo ou não), sem citar a presença da mãe da Aline. Durante dez anos, a mãe dela passou por uma doença desmielinizante que era incurável, ou seja, gradativamente ela foi perdendo a voz, os movimentos, se tornou dependente… e quando a Aline conheceu a Dani ela já passava pelo momento de dedicar 100% da vida aos cuidados da mãe. Por mais que ela conhecesse pessoas e fizesse amizades, era uma pessoa muito arredia e fechada aos relacionamentos. Já tinha vivido um casamento e não se via embarcando em uma nova relação (não só por ela, mas por achar injusto com a outra mulher… por achar que ninguém merece se ver em uma situação assim).
E mesmo encontrando pessoas legais que desejassem ter algo sério ou montar um projeto de futuro, ela criava barreiras para que isso não acontecesse porque não era capaz de enxergar esse futuro naquela circunstância. No meio disso tudo, a Dani chegou trazendo uma perspectiva totalmente diferente. A ideia era não precisar escolher entre abrir mão de tudo pelos cuidados da mãe ou abrir mão da mãe para poder aproveitar a vida, mas sim, incluir a mãe nos projetos de vida. Com muita persistência a Dani foi mostrando isso diariamente (mas não de forma incisiva obrigatória, foi uma persistência que acontecia naturalmente por querer ver as coisas bem), ela foi atrás de uma cadeira de rodas, de uma readaptação à vida e ao mundo novamente já que a mãe da Aline não tinha contato com a rua (para divertimento) há muito tempo… elas passaram a trazer muita vida de volta ao lar. Jantares, viagens, sorrisos, piadas, animação e divertimento.
Aline tem 38 anos, é jornalista, carioca, faz mestrado em Mídias Criativas e tem uma rotina suuuuper intensa no trabalho! Enquanto a Dani tem 53 anos, também é carioca e trabalha enquanto designer… nos hobbies, adora cozinhar e deseja ainda se dedicar um dia a estudar mais sobre gastronomia, na área voltada à padaria e confeitaria.
É na cozinha - e mais especificamente, no café da manhã - o ponto de encontro mais importante do dia. Quando sentam à mesa, junto com o sobrinho que mora com elas, é que constroem o espaço de conversa, de partilha da comida, de acolhimento e de debates sobre tudo o que está acontecendo no dia a dia. Elas comentam que são pessoas que adoram agregar as coisas - desde a família, os assuntos e o afeto - tudo é muito agregador.
A Dani e a Aline se conheceram em um aplicativo para mulheres, no ano de 2016. A Dani não sabia da existência de aplicativos que mulheres poderiam usar além do famoso Tinder, foi então que a tia dela (que também é lésbica) indicou e insistiu para que ela instalasse para conhecer novas pessoas. Ela se convenceu, instalou mas percebeu que não tinha quase ninguém e quis desistir, mas mais uma vez a tia insistiu e disse que talvez ela devesse baixar a faixa etária que estava colocando e procurar por algumas mulheres mais novas. Ela achou isso absurdo, mas colocou e então apareceu a Aline. O que mais chamou atenção no perfil da Aline foi a frase em destaque, que era algo como: gayzista, esquerdopata, feminazi, etc. Achou divertido e começaram a conversar logo sobre eles: os opostos complementares dos signos.
Para explicar o amor entre a Aline e a Dani é importante destacar que uma é o oposto complementar da outra. E esse papo de oposto complementar, por mais que tenha muito sentido pra quem adora falar de signos (e sabemos que entre as mulheres que beijam mulheres é um assunto muito comum), no caso delas, vai muito além de astros: elas se complementam em seus elementos o tempo todo.
A Aline é mais pé no chão, explosiva e sentia dificuldades de se entregar à diversas coisas antes da chegada da Dani. E a Dani chegou com muita leveza, muita fé, um alívio na própria presença e no deixar fluir. Juntas elas foram se encontrando (uma encontrando a outra e ambas se reencontrando em si) e a Aline foi ensinando muito para a Dani também (a receber críticas, a ouvir os outros de formas diferentes e a estar vivendo algo novo).
Tudo aconteceu porque elas sempre tiveram propósito. E ter propósito não quer dizer que será fácil - até porque não foi, elas enfrentaram muitas barreiras juntas e não romantizam as dores e os perrengues diários - mas durante a conversa, diversas vezes ambas falam o quanto a vida melhorou por escolherem se permitir viver isso e o quanto isso continua refletindo no querer estar junto e seguir criando planos e construindo uma vida lado a lado.
A Aline e a Dani falam, por fim, sobre a urgência de termos uma cidade que fale com seu povo, que respeite sua população de verdade - mas respeitar não significa apenas que duas mulheres consigam sair de mãos dadas na rua à tarde em um bairro nobre se quando voltam está tendo tiroteio na porta de casa e não conseguem entrar em segurança.
Falamos de uma cidade em que conseguiremos viver com dignidade pela nossa existência. Com menos violência e menos guerras, menos violência contra mulher, menos genocídio nas favelas. Com comida, água, saneamento básico, acesso às educações e saúdes. É uma urgência de mudar as coisas pela base, de acreditar nas pessoas, de tirar o foraBolsonaro do poder e de não desacreditar, de fazer a nossa parte. De não normalizar a questão de tudo estar errado. É uma cidade em que esse respeito chegue para todo mundo, e principalmente: até onde hoje em dia ele não chega.
Quando falamos sobre a pandemia e sobre o que estamos vivendo atualmente, elas falam que diariamente enfrentamos muitos problemas e que não há como enxergar algo de positivo na pandemia ou no governo foraBolsonaro em si, mas que é muito importante reconhecermos onde estamos: se estamos aqui, se elas estão juntas ainda, se superamos isso dia após dia e se nossos relacionamentos resistem é porque estamos realmente dispostas, é porque queremos muito. E além disso, é também porque queremos construir nossos planos… não queremos só nos imaginar com a pessoa que amamos, mas estar lá ainda, viver o que sonhamos, querer seguir construindo coisas tão boas e tão bacanas como, no caso delas, foram esses anos juntas.
A Dani conta o quanto estar dentro de casa também tem feito repensar e se comunicar de formas tão diferentes. Às vezes ela vê algo de uma forma e a Aline enxerga por outro ângulo, analisa com um olhar muito diferente, com outra cabeça, outra vivência, outra idade. É uma forma de expressão que está sempre em aprendizado.
E juntas elas acabam virando referência para as sobrinhas, para as crianças da família, vão construindo confianças e conversando também com elas sobre todos os tipos de assuntos, porque isso é também falar de amor. A Aline comenta uma frase, que é: “nada que você confessar vai me fazer te amar menos”, e então completa “mas eu sei que você não tem nada para confessar (porque eu já sei de tudo sobre você)” e isso, para ela, fala sobre o quanto a gente se entrega quando ama e o quanto está disposto para ouvir do outro também, conhecer o outro com todas as formas dele. E a Dani diz que, para ela, amar é ter parceria, resiliência, respeito e resignação. É ceder para ganhar lá na frente. E é também uma mistura de preocupação, de afeto e de abraço.
Na época em que moravam juntas (as três) e que cuidavam da mãe da Aline, a Dani trabalhou por um tempo enquanto motorista de aplicativo e falou muito sobre a realidade dura dos trabalhadores autônomos no Brasil. Como é uma correria ter alguém debilitado em casa, estar trabalhando durante horas, passar por diversas situações de risco e mesmo assim chegar em casa disposta. Ela cita novamente a sensação que era chegar e ver um sorriso ou chegar e ter um tempo com a Aline também, porque de certa forma elas tinham um momento delas, um tempo para que pudessem se conectar e estarem juntas e o quanto esse momento era precioso.
Elas comentam que são muito felizes pela forma que a história se construiu, pois entendem que cada casal possui a sua história e que a história delas tem uma pessoa tão importante no meio que é a mãe da Aline e que para sempre possuirá um carinho gigante no coração delas.
Identifico na história delas uma potencia gigante de entendimento sobre o que é o amor entre mulheres, não só romanticamente enquanto mulheres que se relacionam em suas relações sexuais, mas sobre algo que só poderia ser explicado por uma relação baseada entre três mulheres: a forma que elas se encontraram, se ajudaram e se amaram. A troca entre a Dani e a Aline é o amor entre um casal e o acolhimento delas com a mãe da Aline é algo que só o amor entre mulheres é capaz de fazer. Por mais que os homens saibam acolher, nunca seria dessa mesma forma, nunca caberia nessa mesma relação, porque não teria esse olhar. Por mais que fosse uma pessoa incrível, a forma colocada seria diferente. E se fosse um pai, ao invés de uma mãe? Seria totalmente diferente. Se a Aline fosse um filho homem ela teria que procurar uma esposa para ajudar a cuidar e não o contrário, como ela fez, porque essa esposa é a mulher que faz o papel do cuidado que nos é socialmente imposto e designado. Mas não, nessa relação, não. Tudo, enquanto três mulheres, foi completamente natural: elas se encontraram, se acolheram e se amaram.