Jamile e Raquel moram no mesmo condomínio, ainda que em apartamentos distintos, em Brasília. Jamile é super brincalhona, está sempre rindo, é extrovertida, faz palhaçadas e isso quebra bastante a seriedade da Raquel, fazendo ela rir o tempo todo.
Jamile sente muito frio, Raquel se permite viver nas cobertas por puro agrado. Juntas, elas adoram jogar The Sims, ler livros, brincar com os filhos da Raquel e ficar com os bichos que ambas adotaram - elas amam animais, principalmente os cães e gatos. Raquel já trabalhou em uma ONG de cuidados e é uma grande defensora da adoção, foi assim que influenciou Jamile a adotar suas gatinhas (juntando as gatas de ambas, são: Leci, Selene, Aurora, Íris e Bebete). Elas acreditam que animais são peças muito importantes no auxílio ao combate à depressão e ansiedade, e com as gatas, tudo passou a ter outro sentido dentro de casa.
Por mais que morem em Brasília, nem a Jamile, nem a Raquel nasceram lá.
Raquel é antropóloga, finalizou o mestrado recentemente e está se preparando para o doutorado. Já foi doula e é mãe de dois filhos. Ela tem 30 anos e sua família é de Minas Gerais, parte de Belo Vale e outra parte de Belo Horizonte, local onde ela nasceu.
Jamile é jornalista e nos conta o quanto ser jornalista exige da vida - exige do que ela é - mesmo sendo apaixonada pela profissão (e, dentro da profissão, pelo jornalismo esportivo). Ela nasceu em Piracicaba, interior de São Paulo e chegou em Brasília com a família aos 16 anos descobrindo uma cidade totalmente diferente das outras que conhecia.
Quando elas se conheceram, em 2019, o que sentiam (e o que poderiam sentir) ainda era muito incerto. Foi através de um aplicativo de relacionamentos que se conheceram e marcaram um encontro e, neste dia, a Jamile estava se sentindo um pouco triste, não queria ir. Foi num aniversário antes e uma amiga a incentivou, disse que poderia ser uma pessoa legal, era uma oportunidade.
Por estar no aniversário antes, já estava com pessoas, bebendo e conversando, então quando ela chegou trouxe consigo uma animação que descontraiu o primeiro momento sem conhecer a Raquel. Elas se deram bem, ficaram e começaram a se relacionar a partir daí.
Mesmo que um relacionamento vá se construindo de forma natural no começo, elas contam como foi lidar com a ansiedade e a depressão e entender os limites de cada uma. Para a Jamile, por exemplo, entender que não seria uma carga, um peso a mais ou algo do tipo na vida da Raquel. E, também, a Raquel explica sobre esse momento de assumir um namoro, que a fez refletir em várias coisas entendendo que era uma mãe solo, que precisava diariamente dar conta de muitas coisas na vida e do que isso iria demandar, se estava realmente preparada e sentiu medo de não conseguir estar cem por cento na relação.
Ambas tinham seus medos, mas conseguiram equilibrar tudo aos poucos, mostrar uma para a outra o que sentiam e conversar sobre isso. Entender seus limites, colocá-los de forma amorosa e visualizar as diferenças com amor também. Segundo a Raquel: “Olhar e dizer: te aceito e tô aqui.”
Morar tão próximas facilitou diversas coisas, ainda mais no momento mais intenso da pandemia de Covid-19, em 2020 e 2021. Os filhos da Raquel ficaram um ano sem escola, todos estavam dentro de casa e ter a Jamile por perto era muito importante.
Elas também têm o apoio da família (Raquel, inclusive, ama a família da Jamile e eles se dão muito bem), mas para a Jamile viver o processo de “saída do armário” foi um processo prévio bastante intenso.
Hoje em dia, para além da família, Jamile conta sobre como as pessoas questionam ela sobre ela assumir e maternar os filhos da Raquel. Ela explica que nunca se colocou neste lugar e que não quer ter filhos, também não gostaria de se ver o tempo todo nesse questionamento. Ambas valorizam a independência, o tempo sozinhas ou juntas e sabem que, se assim desejarem, vão ter uma relação saudável com as crianças. Essa relação já existe, inclusive - elas adoram a Jamile, o quanto ela brinca com eles, eles visitam as gatinhas dela… Tudo é uma questão de naturalidade sobre o relacionamento que as duas possuem, enquanto mulheres que se amam, e que as crianças acolhem também.
Elas falam o quanto falta conhecer mais mulheres que têm filhos ou que estão em situações como as que elas vivem, ser uma mãe solo e namorar outra mulher.
Jamile explica que sempre viveu uma heterossexualidade compulsória e ter essa noção a fez mudar muitas coisas, inclusive o entendimento sobre a forma de se relacionar com alguém. Ela nem conseguia imaginar uma relação saudável como a que tem hoje ou de que alguma pessoa a conheceria como a Raquel conhece e escolheria ficar, não iria embora na primeira oportunidade, que segue ali e ama de verdade. Já viveu muitas relações “de vidro”, como ela mesma colocou: são relações que na hora do conflito, se ela não ceder, a pessoa pode pegar, jogar no chão e quebrar toda a relação. Com a Raquel, aprendeu que as relações podem ser “de borracha", serem maleáveis, se caírem no chão, juntam, limpam e cuidam, com conversa e afeto, tentando entender a dor.
Raquel completa a fala da Jamile, explicando que o ato de gostar de alguém era sempre algo envolvendo interpretar um papel. Ficar comprovando algo, ser o que a pessoa queria, pois se não fosse, teria medo dela ir embora… e que agora não é mais assim. Elas estão juntas porque ambas querem, independente de qualquer papel. Estão conectadas e são gratas à isso.