A história da Laiô e da Íris começou de maneira inesperada, conectando caminhos por meio das redes sociais. Íris mantinha uma página onde compartilhava reflexões sobre relacionamentos não-monogâmicos e experiências pessoais. Laiô, que estava em um momento de autodescoberta após o término de uma relação, passou a acompanhar esse conteúdo. Entre os conteúdos postados, chamava muita atenção a forma que a Íris se expressava, não inicialmente por interesse romântico ou flerte, mas por admiração genuína, curiosidade e vontade de aprender sobre esse novo ‘universo’. Mas, por mais que acompanhasse os conteúdos, Laiô nunca interagiu com a página. Algum tempo depois, Íris apareceu no perfil de Laiô, e ambas começaram a se seguir. Trocaram algumas mensagens e, entre essas interações, perceberam que tinham amigas em comum, iam em lugares em comum - e até outros lugares que Laiô nunca tinha conhecido, o que deixou ela muito intrigada, pensando “Como essa menina chegou aqui em tão pouco tempo e tem conhecido mais coisas que eu?”.
Quando finalmente se esbarraram, em setembro de 2023, foi num samba em Itacaré, onde fizemos a documentação acontecer. Foi Íris quem reconheceu Laiô (e até checou no Instagram pra ver se era ela mesmo). Se apresentou, dançaram juntas, mas a interação foi breve. Dias depois, se esbarraram novamente num show que Laiô estava fazendo, dessa vez em Serra Grande, município próximo à Itacaré e local onde Íris morava. Foi lá que Íris sentiu algo diferente, pensou: “Que pessoa interessante”.
Cerca de 15 ou 20 dias depois se esbarraram novamente, dessa vez em Salvador. Laiô estava na cidade para mais shows e Ísis ia para lá com frequência, mas não esperava encontrá-la. Foi a terceira coincidência e então decidiram: era hora de marcar um encontro intencional. Tomaram café da manhã juntas e ali começou a se desenhar uma história que parecia ter sido escrita pelo acaso – ou pelo destino.
Íris estava com 32 anos no momento da documentação. É natural do Rio de Janeiro, mas, com apenas seis meses de idade, mudou-se para Salvador, onde viveu a maior parte da sua vida. Psicóloga de formação, dedica seu trabalho ao atendimento da comunidade LGBTQIAPN+ e às questões relacionadas à não-monogamia. Teve sua trajetória profissional transformada ao longo do tempo, principalmente quando começou a se reconhecer como uma pessoa LGBT. Esses aspectos foram se refletindo em sua prática clínica, até se tornarem o foco integral de seus atendimentos. Durante a pandemia de Covid-19, com a migração para o formato online, surgiu também o desejo de sair da cidade grande e buscar um estilo de vida mais tranquilo e conectado à natureza, decidiu passar um tempo na Chapada Diamantina, voltou à Salvador, viajou mais um pouco e, finalmente, decidiu se estabelecer em Serra Grande, na Bahia. Hoje, ela vive com Laiô em Ilhéus - uma escolha que inicialmente não fazia parte de seus planos, já que considerava Ilhéus grande demais para o estilo de vida que idealizava - mas a vida e o trabalho de Laiô faziam mais sentido na cidade, e assim encontraram um equilíbrio.
Laiô, no momento da documentação, estava com 37 anos. Nasceu em Ilhéus e foi criada em Uruçuca, vindo de uma família de produtores rurais das fazendas de cacau. Essa mesma família, acolheu sua identidade artística e acredita plenamente na pessoa que ela se tornou, investindo na sua educação com o desejo de oferecer um futuro diferente. Hoje ela trabalha enquanto cantora e compositora. Entende que é através da arte que define a forma como se expressa no mundo. Foi em Itacaré o local onde ela se descobriu artista, cantando pela primeira vez.
O início do romance entre Íris e Laiô aconteceu num ritmo diferente, entre viagens e deslocamento, no que elas apelidaram de “romance viajante”. Íris precisou dividir seu tempo entre Serra Grande, Salvador e a Paraíba, para dar suporte à família em um processo de luto. Tudo aconteceu logo nas primeiras semanas em que estavam juntas e foi nesse vai e vem que viveram um amor viajante, encaixando encontros entre as viagens, sem saber ao certo o quanto aquilo duraria. Seguiram os primeiros meses assim, até o início de 2024, quando perceberam que os sentimentos estavam se enraizando e intensificando.
Laiô apresentou Ilhéus para Íris e os encontros começaram a ganhar um significado maior. Uma situação marcou esse momento: em março, a mãe de Laiô fazia aniversário no dia 9, mas Laiô tinha um show importante em Salvador no dia 8. A única forma de voltar em tempo seria de carro e Íris prontamente se ofereceu para dirigir entendendo a importância da relação de Laiô com a mãe. Foi nesse momento que ambas perceberam o quanto a parceria entre elas já tinha se fortalecido, transformando o que antes era um romance casual em algo mais sólido. Laiô pensou: “Essa não é qualquer pessoa”.
O encontro das duas aconteceu em um momento de transformações pessoais para ambas, e essa vulnerabilidade criou uma base de acolhimento e parceria. Mesmo com pouco tempo juntas, já havia um grande cuidado uma com a outra. Nos momentos difíceis de Íris, Laiô enviava músicas e poesias, fortalecendo o vínculo por meio dos gestos afetuosos. E esses detalhes fortaleceram o vínculo que era recente e que não estava fisicamente próximo. No dia em que documentaram essa história, inclusive, estavam finalizando a mudança para o apartamento onde passariam a viver juntas. Conversamos sobre como a convivência traz desafios, as mudanças não são fáceis; mas destacaram a importância de respeitar os tempos e ritmos individuais, enfrentando os conflitos com leveza e comunicação. Dividir o lar, para elas, é um aprendizado constante – e uma forma de construir, juntas, um lugar seguro.
Foi ajustando suas rotinas para aproveitar os momentos em que Laiô e Íris encontraram a melhor forma de se adequar à semana corrida, já que trabalham em horários opostos – Laiô à noite, Íris durante o dia. Valorizam muito os cafés da manhã, que se tornaram quase um ritual de conexão. Mesmo quando Iris tem atendimentos mais cedo, ela dá um jeito de sentar à mesa, entre um compromisso e outro, para compartilhar esse momento. É ali que conversam, trocam olhares e se equilibram, criando um espaço de calma e proximidade no meio das rotinas agitadas.
Elas veem sua relação como um convite constante à reflexão e ao cuidado mútuo. Foi através desse encontro que aprenderam mais sobre a não-monogamia, a horizontalidade dos afetos e a importância do tempo de qualidade com quem amam - sejam familiares, amigos ou seus animais de estimação. Por mais que estejam apaixonadas e vivam a intensidade de uma relação jovem, entendem que é essencial valorizar a liberdade individual e os outros vínculos que cada uma tem. Esse amor, cuidadoso e maduro, desafia o discurso a ser vivido na prática, lembrando-as de nunca abandonar o cuidado e a atenção com as pessoas ao seu redor.
No dia anterior à documentação, Laiô viveu uma situação que as fez refletir sobre os desafios ainda presentes na cidade em que vivem. Enquanto caminhavam pelo centro indo comprar coisas da mudança, de mãos dadas, um homem que passava com sua esposa e seu filho disse: “Não pode não, só pode homem com mulher.” Inicialmente, Laiô pensou ser uma brincadeira vindo de alguém que a conhecia, estava distraída conversando algo sério com a Íris e só percebeu uns passos à frente a seriedade do comentário. Apesar da vontade de reagir, sentiu medo e seguiu em frente. Mais tarde, ficou pensando: o que fazia aquele homem se sentir confortável em dizer algo assim? Por que o simples ato de caminhar de mãos dadas era visto como uma afronta? Onde ela está vendo menos amor entre as duas do que ali, na família dela? Elas só estavam andando na rua. Num calçadão cheio de gente. Elas desejam que o futuro traga mais coragem e menos medo - elas caminhando de mãos dadas conseguiram ofender mais que se um casal heterossexual-cis estivesse se beijando de forma vulgar. O desejo que fica é mais coragem para amar e viver livremente, um mundo onde expressar afeto não seja motivo de ofensa, um lugar onde não tenhamos medo.